
VIII – Dolorosa Lição
Eloise
— MAVHENNA, SE ABAIXE!
A voz de Avalon me alcançou dois segundos antes do cilindro maciço de argamassa me acertar em cheio.
Desviei por instinto, mas outro mero instante e aquilo teria esmagado meus ossos — os ossos de Odette — contra a parede. Por mais que fosse sensacional conseguir verdadeiramente sentir coisas outra vez em posse do corpo da minha irmã, essas coisas não eram lá muito legais quando se tratavam de dor e agonia consideráveis.
Lancei um olhar agradecido a Saetang, mas ela estava muito ocupada brandindo seus daabs, sabres tailandeses curvos bem afiados e maus, contra a besta tâmil que estava tentando abocanhá-la com uma das oito bocarras. Eu bufei com a irritação ao me erguer do chão empoeirado, grunhir e sacar o celular num gesto agressivo.
Illya atendeu depois de dois toques.
— Você disse que o círculo de pedra ungida funcionaria! — Vociferei, antes mesmo que ela conseguisse dizer “alô”.
Kerazoi suspirou, nada afetada pelo meu tom exaltado, culpa da visão dos milhares de dentes daquela coisa (que mais parecia um sapo afogado, murcho e bem grande) tentando fazer Saetang virar uma bela de uma papinha tailandesa.
—Certo. Tentaram as lâminas astrais? — indagou ela num tom cansado, como se eu estivesse atrapalhando seu chá da tarde com minha situação letal em vigência. — Embebi o daab de Avalon com sangue de víbora cambojana, elas deviam estar enfraquecendo a besta.
—Bom, a cada vez que as espadas o atingem, a coisa fica mais brava e mais determinada a acabar com a nossa raça, então eu diria que “enfraquecendo” é uma palavra relativa!
—Se o círculo de pedra não conseguiu contê-la, tudo que podem fazer é cansar a besta até que consiga controlá-la com as habilidades de Rhakfasa.
— E se eu estiver cansada demais para fazer isso até lá?!
Pude praticamente ouvir o sorrisinho compadecido que Illya abriu do outro lado da linha.
— Então eu suponho que poderei tirar o lugar de vocês duas da mesa de jantar e da lista de pagamento desse mês.
— Garota, sério! Você precisa de um coração! E de um terapeuta!
Rosnei um xingamento em português não muito educado ao encerrar a ligação e enfiar o aparelho no bolso, mas ainda consegui ouvir o riso entretido de Kerazoi do outro lado da linha antes de desligar. Ela era assim, irritantemente composta e despretensiosamente inflexível: às vezes agia como se as coisas importassem, às vezes não dava a merda da mínima. Talvez fosse uma coisa de gente russa, mas era provável que a característica fosse resultado da convivência prolongada com Dantalion.
Eu nunca descobriria se continuasse parada no lugar esperando aquele monstrengo terminar com Avalon para vir me jantar de sobremesa, no entanto.
Me concentrei e assumi a forma de um demônio-serpente — uma criatura inferior que eu tinha absorvido mais cedo especialmente para aquela função, também sob a instrução de Kerazoi. A arma de Saetang estava coberta com sangue de cobra porque, aparentemente, a besta tâmil não gostava muito de répteis, e a distração funcionou bem até demais.
O único e enorme olho localizado na barriga enrugada se arregalou e oito tratos intestinais ficaram visíveis quando as bocarras rugiram na minha direção, deixando Avalon de lado para sacolejar o gigantesco corpo encharcado até onde eu estava, cabeças sibilando e cortando o ar acima de mim.
— Suco de pózinho! — cacarejei, desviando da primeira fileira de dentes instantes antes da minha primeira e única decapitação precoce. — Você por acaso gosta de Taylor Swift?
Consegui enxergar a careta incrédula de Avalon mesmo daquela distância, com a visão obstruída por um demônio de quatro toneladas e mais de meia dúzia de pescoços.
— Sério, Mavhenna?! Está me interrogando sobre meu gosto musical agora?!
— Sabe, eu não ando com ninguém de gosto musical duvidoso — funguei, ao deslizar por baixo das três pernas da besta e sair ondulando no corpo reptiliano para alcançar Saetang, arfando do outro lado do depósito abandonado, sabres em riste nas mãos ensanguentadas. — Mas o que eu queria mesmo saber era se você já ouviu Death By A Thousand Cuts![1]
O semblante da espiã se iluminou com uma compreensão sombria quando ela posicionou os pés e girou os daabs de um jeito ameaçador.
—Podia ter só falado que quer que eu picote essa merda de coisa em pedacinhos.
Acenei com a mão, arfando de leve. Odette parara com os cigarros por insistência minha e pela necessidade de esforço físico durante os trabalhos, mas os pulmões da minha caçula sempre acabavam tropeçando e chiando nas horas erradas.
—Só pequenos cortes, deixe o vodu que Illya fez na sua espadinha agir nesse troço — apontei para o demônio furioso se voltando para nós. — Com sorte, vai enfraquecê-lo o bastante. Deixe o resto comigo.
Sabe, Avalon podia até ser casca-grossa e escorregadia feito manteiga quando se tratava de criar laços emocionais, mas com certeza era eficiente. A besta estava resfolegando e sangrando fluidos escuros aos litros em poucos minutos, agora que o objetivo (consideravelmente mais fácil) não era matá-la e sim deixá-la vulnerável.
Vulnerável para mim, é claro.
O poder adormecido de Odette se agitou nas minhas veias quando o demônio perdeu poder o suficiente para adentrar o território de influência dela. Eu era uma das poucas criaturas infernais que conseguia acessar o poder do próprio hospedeiro, porque não tinha controle da minha irmã por completo. Afinal, assim que a consciência do corpo que seres astrais tomavam se esvaía, por meio de uma possessão completa e irrevogável, as habilidades também se perdiam junto. O que sobrava era a casca, um simples amplificador para os poderes do próprio demônio ou entidade.
Mas Odette ainda estava ali, ainda estava sã e em posse do próprio corpo, apenas voluntariamente o emprestando a mim no momento, então eu era capaz de acessar o dom mórbido de controle enunciativo da minha caçula, intensificando o poder dela assim como ela expandia o meu.
As palavras vieram até a ponta da minha língua quando voltei à aparência de Oddie e ergui as mãos marcadas com símbolos profanos e cicatrizes grotescas, agora descobertas e sem luvas de dedo:
—Ettuvāykaḷ! — rosnei, me deliciando com o lampejar de pavor no único olho esverdeado da besta tâmil. — Comedor de Moscas, Predador dos Afogados, Duque Sangrento de Chennoi — recitei, me impressionando internamente com a quantidade de títulos. Aquele devia ser um nível oito ou nove. Com certeza não estava para brincadeira. — Sente e dê a maldita da patinha agora, seu desgraçado nojento e cabeçudo.
A besta soltou um urro indignado, se contorcendo em revolta ao poder de Odette — mas não teve escolha a não ser obedecer à minha ordem desdenhosa. Duas das três imensas pernas se dobraram, a única restante se erguendo ao meu comando, e as oito cabeças se abaixaram em submissão.
Avalon soltou uma gargalhada jocosa, se aproximando para limpar os sabres na pele enrugada do demônio subjugado, para logo em seguida guardá-los nas bainhas apropriadas, uma de cada lado da cintura. Uma das bainhas era dourada, decorada em cobre, e a outra, prateada, adornada com ferro — a primeira, para o daab de lâmina execrada, eficiente contra entidades; e o segundo, para o de lâmina etérea, usada contra demônios, o que Illya tinha embebido em sangue de víbora.
Uma arma daquelas já era extremamente cara e incomum, já que requeria um processo dificultoso e quase mortal para ser produzida, e Saetang tinha duas enormes, uma para cada tipo de inimigo que enfrentasse.
Só uma das dezenas de benefícios que o fato de sermos sócias do clubinho Dantalion oferecia.
—Você demorou a se tornar útil, hoje — Avalon comentou de súbito, ainda com os olhos ferozes cravados na besta agora subserviente. — Está com a cabeça longe?
—Será que preciso lembrá-la de que fui eu que adestrei essa coisa, literalmente dois segundos atrás?
—Depois que eu honrei sua homenagem macabra à Taylor Swift, talvez sim — concedeu ela, dando de ombros. — Mas mesmo isso demorou para acontecer. Você estava aérea.
Bom, sim. Ela estava certa, costumávamos lidar com aquele tipo de problema bem mais rápido, mas o obstáculo não fora só eu. Estar em posse do corpo da minha irmã sempre me deixava mais vulnerável a sentimentos e sensações, mesmo que eu valorizasse cada minuto com a minha pobre e condenada alma. A cabeça de Odette também estava bem distante dali, o que não ajudava em nada, mas o fator principal do meu descuido com certeza era o fato de estarmos em Cleveland — o lugar onde eu vira Quebec, meu fantasma canadense alado do natal passado, pela última vez.
Sim, isso fora há quase uma semana e era improvável que ele continuasse por ali, mas o nervosismo ainda estava corroendo minhas entranhas fictícias. A entidade e seu esquadrão ainda poderiam estar procurando rastros de Kazura pela área, entretanto, então todo momento que ficávamos ali era um momento no qual ele poderia topar comigo, então tratei de apressar Saetang:
—Estou ansiosa pelo lançamento de uma linha de sobretudos da Dior amanhã — menti com naturalidade. — E quero voltar antes que eu perca a chance de reservar os meus, obrigada.
Avalon ergueu uma sobrancelha escura.
—É mesmo? Qual estilista, e de que coleção?
Ah, merda. Esqueci com quem estava falando. Aquela espiã de araque gostava tanto de se empanturrar de roupas caras quanto eu — e com certeza iria atrás da informação falsa, nem que fosse para me desmentir.
—Oh, tudo bem — revirei os olhos, me desculpando em pensamento com Odette por usar a justificativa dela. — Rhakfasa levou um bolo de um cara na segunda. Ela está um pouco irritada, e consequentemente, eu estava distraída. Feliz?
Todos fora da confiança extrema de Dantalion — ou seja, todo mundo além de Illya e Eisheth — pensavam que Odette era uma humana poderosa que tinha feito um trato comigo. Era uma troca de vantagens mútua não muito comum naquele meio, mas ainda passível o suficiente para se fazer acreditar. Eles a conheciam como Rhakfasa, uma mulher de temperamento cruel, habilidade impiedosa, língua afiada e nada mais, por isso o sorrisinho penoso que curvou os lábios finos de Saetang era completamente justificável.
—E o pobre coitado ainda está vivo?
—Se não estivesse, ela com certeza não estaria tão irritada.
Além disso, nós não matávamos humanos inocentes. Galen Weidmann não tinha feito nada de errado além de vacilar com minha irmã no dia do aniversário dela — era motivo o suficiente para esfolar as bolas do imbecil com uma lixa de unha, sim, mas matar, não.
—Ande logo com isso, então — a espiã indicou a besta tâmil com a cabeça. — Se bem conheço Rhakfasa, ela com certeza vai querer exulcerar os testículos do sujeito até deixá-los em carne viva.
Sim, minha irmã tinha uma pequenina reputação. Algumas partes dela eram piores que as da minha, inclusive, o que fizera Avalon “gostar” — do jeito “Avalon” de gostar — dela logo de cara. As duas tinham zero papas na língua e zero paciência para homens, então se davam muitíssimo bem, o que fazia um belo trabalho em me dar insônia à noite.
Não, eu também não dormia mais, então tecnicamente não tinha insônia de verdade, mas enfim, foi uma figura de expressão. Vocês entenderam.
Me virei para a coisa ainda se retorcendo de leve à nossa frente com um suspiro.
Alguns demônios chegavam a implorar, naquela parte do processo. Os mais novos, principalmente, ou os mais inferiores. Aquela criatura era velha, no entanto, e já perdera toda e qualquer consciência humana; era apenas feita de instinto e fome e brutalidade. Não houveram pedidos por clemência ou piedade, apenas ira crua e revolta contida.
Deixei minha própria essência assumir o controle por cima da de Oddie, e espiralei ao redor da criatura numa nuvem escura e rarefeita. Senti a existência dela se extinguindo e curvando à minha, não pacificamente, obstante. Ela lutou e rugiu e se desfez em espasmos teimosos, mas estava fraca demais para resistir.
O corpanzil desprezível cheirando a carne úmida podre começou a soltar uma fumaça azulada, talhos e buracos ocasionais se abrindo na epiderme putrefata, as cabeças pendendo dos pescoços e o único olho derretendo onde estava alojado na barriga.
O poder daquela coisa — um predador de pântanos, um devorador de rios — cedeu diante do meu, e foi absorvido como dezenas de outros antes dele. A casca que um dia fora seu corpo se tornou um amontoado enegrecido e disforme de membros, ainda soltando vapor e enxofre, mas a consciência perversa e o poder considerável foram unidos a mim. Silenciados, dominados, diminuídos, mas ainda assim presentes.
A cada grama de poder como aquele, eu crescia mais e mais em poder e influência demoníaca. Dantalion dizia que me seriam oferecidas tropas e títulos dignos de nota assim que eu fosse expurgada pela primeir