Howl bloqueou o que talvez fosse o décimo sexto avanço dela com um giro habilidoso dos sai de ferro.
Safira grunhiu, irritada, e tentou achar uma brecha na defesa dele enquanto firmava as sirwas que Zyhe lhe dera nas mãos.
No início daquele treino, a moça pensou que provavelmente teria de pegar leve com ele, já que o Diamante ainda estava se recuperando dos ferimentos e sua perna ainda doía caso o rapaz a forçasse. Ela não queria nem treinar a princípio, mas Howl fora bem convincente ao dizer que se ela não treinasse com ele, o rapaz arranjaria outra pessoa para substituí-la. Ele não aguentava ficar parado, e sentia falta das obrigações como capitão da guarda, então Safira ofereceu um acordo: uma hora de treino seria o equivalente a duas horas as quais ele passaria descansando, quieto e sem reclamar.
O Diamante havia reclamado bastante durante a negociação, mas ela por fim venceu.
Então eles vestiram os couros e foram para a arena, onde ela estava sendo miseravelmente derrotada.
Os dois podiam ter ido para o campo de begônias, mas era um esforço de caminhada desnecessário, e Safira não conseguiu nem ao menos demonstrar que não se incomodava com essa possibilidade. Ela não estava preparada para voltar ao santuário de Temise, ao santuário deles, e reviver o que Eiko a fizera passar ali. O objetivo de Skies fora macular o lugar para o Diamante, mas acabara estragando-o para ela. Safira queria superar aquele sentimento de desconforto, mas só o tempo diria quando conseguiria fazer isso. Então não disse nada, mas também não precisou, pois Howl seguiu direto para o ringue da guarda, sem fazer perguntas ou contestar sua decisão. Ela o amou um pouquinho mais por isso.
Mas agora estava tentada a pegar esse pouquinho de volta.
O rapaz conseguiu jogar uma de suas sirwas longe pela quarta vez ao usar o sai para prender a lâmina entre uma das três pontas e girar, arrancando a arma da mão de Safira. Ela soltou um gemido frustrado, se afastando para ir atrás da sirwa caída.
—Como você faz isso? Achei que esse negócio servia para impedir ataques de lâminas mais longas.
Os sai também haviam sido feitos para serem usados em pares, um em cada mão, como suas sirwas. Se pareciam com pequenos tridentes com punhais, exceto pelo fato de que a ponta do meio era bem mais longa que as outras duas.
Howl a observou se abaixando para agarrar a pequena adaga com um meio sorriso pendurado no canto da boca. Ele não parecia estar sentindo dor, o que era ótimo, mas não que dar uma surra nela exigisse esforço. O Diamante não era o capitão da guarda à toa.
—Acho que para um humano, sim, é mais fácil usá-los num combate contra uma espada ou outras armas similares. Mas para alguém com os reflexos e a velocidade da nossa espécie...
—Certo, entendi — ela bufou, posicionando os pés para recomeçar a luta.
Safira avançou, descrevendo arcos com as sirwas, e o rapaz dançou ao redor dela como um bailarino profissional, desviando das lâminas e se esquivando com movimentos fluidos, ágeis. Ele sempre conseguia sair do alcance das armas dela ou bloquear seus ataques com as próprias, e a garota sempre terminava irritada e arfante por não conseguir nem ao menos chegar perto de atingi-lo. Ela achava que já tinha adquirido um bom aproveitamento da luta com adagas, mas estava obviamente errada. Sabia que estava aprendendo e que chegar ao nível de um guerreiro como Howl era bastante improvável, mas ainda assim... Era irritante.
Ela arfava, pois seus músculos estavam novamente desacostumados ao ritmo intenso do treino, mas Safira ainda tinha muita energia para gastar. Verificando as emoções do Diamante num instante fugaz, ela também percebeu que Howl não estava tão ruim quanto temia. Ela sentiu um pouco de frustração vindo dele, mas isso provavelmente se devia ao fato de que o rapaz não estava na melhor forma para uma luta, e supôs que ele se sentia mais lento, menos capaz, por mais que a moça achasse que ele estava desnecessariamente capacitado, até. No entanto, Howl ainda se sentia satisfeito por estar fazendo o que sabia fazer, voltando ao cotidiano de antes.
O sol do início da tarde reluzia acima deles com um brilho fraco, e Safira estava grata pelo frio não estar arrepiando seus ossos como normalmente costumava fazer naquela época do ano. O exercício ajudava, mas a jovem sabia que o metabolismo licantropo era menos sensível a temperaturas baixas. Ela devia estar com os dedos rígidos de frio, não conseguindo nem manusear as sirwas direito, mas as armas rodopiavam e retiniam em suas mãos de modo desimpedido e leve.
Quando Howl se defendeu de uma estocada superior e girou o sai num arco para cima e para baixo, arrancando a lâmina dela pela quinta vez, Safira bateu o pé como uma criança.
—Isso não é justo.
Ele riu e se abaixou com um grunhido para pegar a lâmina para ela.
—Espere! — a moça repreendeu, culpada mesmo com os olhos dourados do Diamante reluzindo com a diversão. — Eu ia pegá-la.
Ela não queria que ele forçasse a coxa mais do que já estava fazendo.
Entregando a sirwa a ela, Howl bateu o próprio sai levemente na lateral do seu joelho esquerdo.
—Você dobra um pouco a perna esquerda para pegar impulso no golpe toda vez que vai atacar — ele revelou, e Safira arqueou as sobrancelhas. — É como sei a hora de me defender do seu avanço.
—Você quer dizer que eu basicamente digo a você quando me bloquear ou se esquivar?
—Basicamente — o canto dos lábios do capitão da guarda se repuxou. — Sua raiva te atrapalha um pouco também, e você sabe disso. Fica descuidada quando se irrita por não conseguir abrir uma brecha na minha defesa.
—Bom, você não é exatamente um adversário à minha altura — ela cruzou os braços, debochada.
Howl balançou a cabeça para ela, contendo o sorriso.
—Mesmo os guerreiros mais experientes normalmente revelam um sinal antes de fazer um movimento. É instintivo, mas acaba denunciando seus golpes.
—Então eu devo lembrar de parar de dobrar a perna?
—Não mesmo. Só vai te distrair e te atrapalhar na luta. O que você deve fazer, Safira — ele se afastou alguns passos, os sai rodopiando em círculos mortais entre seus dedos. — É descobrir o sinal do seu oponente antes que ele descubra o seu.
Ela fez uma careta, quase cogitando pedir uma pausa para a água.
Como Safira possivelmente ficaria observando-o em busca de sinais enquanto estava ocupada tentando não ser atravessada por uma arma ou um punho? Fora que Howl podia ser grande e pesado, mas ele era rápido, o desgraçado. Ela nunca conseguiria notar algo tão bobo quanto um dobrar de joelhos ou uma respiração errática.
Ele atacou sem que a jovem nem ao menos conseguisse se preparar, e um sai passou zunindo como um raio pela sua cabeça segundos antes dela se abaixar, tirando alguns dos fios brancos de sua trança do lugar.
Safira soltou um ofegar irritado.
—Isso não foi muito gentil da sua parte.
—Fale menos e observe mais, senhorita Erklare — Howl a provocou com o termo de respeito, e ela revirou os olhos.
A moça havia perdido a oportunidade de notar algum movimento que denotasse o sinal, mas não que adiantasse reclamar. Em vez disso, ela se concentrou em fintar para longe das pontas dos sai e não permitir que Howl a irritasse por ser tão malditamente bom naquilo. Safira tinha um pavio inegavelmente curto, mas ela tinha de aceitar que não iria vencê-lo por meio da força bruta ou da velocidade, tinha de pensar como ele pensava — de modo estratégico, calculista. Antecipando seus movimentos, ela antecipava as próprias reações, e isso poderia mudar o ritmo da luta completamente.
O Diamante pressionava-a de maneira incansável, e parecia que ele havia acelerado o compasso dos ataques apenas para tornar mais difícil notar um padrão em seus deslocamentos. Ela mal tinha tempo de analisar sua postura ou tática antes dele partir para cima com toda a fúria dos sai, e um deles acabou arranhando seu braço num instante de distração.
—Você está perdendo parte da atenção no conflito — ele censurou. — Está tão preocupada em encontrar o sinal que não se lembra de manter a própria defesa intacta. Podia ter escapado desse golpe com um mero passo para o lado.
—Tenho certeza que muitas pessoas que foram atravessadas por essas porcarias podiam ter escapado da morte com um mero passo para o lado.
Howl bufou, meneando a cabeça.
—É um ponto válido.
Safira inspirou fundo, se preparando para que ele não a pegasse de surpresa outra vez.
—De novo — ordenou.
Ele avançou com os sai, mas ela mal conseguiu notar algo antes de precisar erguer as sirwas e bloquear o ataque. Aquelas eram armas de curto alcance, o que consequentemente fazia da batalha algo muito próximo, quase íntimo. Eles se esbarravam o tempo todo, girando e batendo os ombros para impedir golpes com as lâminas, movendo os pés e refreando mais golpes com um levantar de cotovelo ou de pulso. Ela já estava começando a achar que Howl era um dos tais poucos guerreiros experientes que não tinham sinal algum.
Safira percebeu que nunca conseguiria observá-lo em busca do sinal naquela distância quase que inexistente entre os dois, e acabou partindo para a defensiva. Passou a agir como Howl normalmente agia, desviando e se esquivando para longe em vez de atacar sem piedade como ela costumava fazer. Daquela maneira tinha de se concentrar mais em não ser atingida, mas ao menos conseguia analisá-lo por mais tempo antes do próximo golpe. Ele quase sorriu ao perceber a mudança em sua técnica, mas continuou avançando sem nem lhe dar espaço para respirar.
A jovem esquadrinhava cada pedaço dele em busca de um padrão enquanto as lâminas se chocavam e retiniam, e acabou ficando distraída com outras coisas. Em como a camisa branca se agarrava ao peitoral largo de Howl com o suor. Em como os ombros bem definidos se agigantavam sobre Safira. Em como os braços musculosos tinham a extensão perfeita para envolvê-la e...
—Pare com isso — ele rosnou ao quase perder o equilíbrio depois de contornar um de seus ataques. — Se concentre.
Safira arregalou os olhos, xingando internamente.
Deusa acima, ela esquecia que ele tinha acesso aos sentimentos dela pela conexão. A jovem estava prestes a corar e se desculpar quando percebeu que ele parecia tão desestabilizado quanto ela, se não até mais.
Interessante.
Voltando a atacá-lo sem exprimir uma palavra sequer, Safira experimentou parar de observá-lo por um instante e apenas incentivar aquela pequena parte fantasiosa de si mesma. Ela tentou manter seus golpes no básico enquanto sua mente adentrava territórios que normalmente preferia acessar quando estava sozinha. Pensou em como gostava da sensação dos lábios de Howl correndo pela sua bochecha, pelo seu pescoço. Em como ele apertava suas coxas de maneira incisiva quando os beijos entre eles começavam a ficar ligeiramente apimentados demais. Como gostava de ouvi-lo grunhir de maneira quase que sôfrega quando ela se esfregava nele.
Howl tropeçou.
Safira avançou sem pena, errando o ombro do capitão da guarda por milímetros. Ele chiou em protesto.
—Pare de trapacear.
—Não sei do que está falando — ela cantarolou, arfante, enquanto mentalizava as mãos dele subindo por seus quadris, sua cintura, seus seios.
Então conseguiu abrir outra brecha e foi a vez dele de cambalear para trás, assumindo uma posição de defesa. Safira estava ficando quente e desejosa, mas a adrenalina apenas impulsionava seus membros adiante.
A moça pensou no corpo dele comprimido contra o dela, em como ela gemia em êxtase quando Howl se encaixava de forma enlouquecedora entre suas coxas.
—Safira — ele sibilou, mas ela não deu trégua nenhuma, já que ele estava evidentemente mais lento após seus esforços.
Foi quando Safira viu.
Os dois últimos dedos da mão esquerda do Diamante tremiam quase que imperceptivelmente ao redor do sai toda vez que ele se movia para atacá-la. Ela percebeu o padrão nas próximas duas vezes em que o rapaz avançou, e uma parte dela meio que sentiu inveja. Aquele era um sinal realmente difícil de se perceber, já que as mãos dele estavam em constante movimento durante a luta, e não era nada óbvio como dobrar ligeiramente o joelho esquerdo.
Depois disso, foi quase fácil.
Nada mais justo do que dizer que Howl já estava cansado. Ele havia se desgastado demais naqueles meros quarenta minutos de treino, e sua coxa devia estar latejando terrivelmente. Mesmo se ela não tivesse usado daquelas artimanhas sujas de minutos antes para distraí-lo, o capitão da guarda estava lutando com menos vigor, menos habilidade. O tempo se esforçando havia cobrado seu preço.
Safira conseguiu fingir estocar num dos seus golpes fadados ao fracasso e, quando Howl moveu o sai para tentar jogá-lo para longe outra vez, a garota apenas se esquivou para trás, girou e bateu o cabo da arma na mão dele, fazendo-a cair do agarre do Diamante. Surpreso, ele não conseguiu se recuperar a tempo do ataque súbito dela, e Safira o fez se dobrar com um chute do abdômen seguido por outro na mão que segurava o sai restante. Doeu um pouco, porque aqueles eram os dedos de prata, mas ele ainda teve de largar a arma com o impacto da batida.
Por fim a garota tinha uma sirwa na base da costela dele — direcionada ao coração — e outra em sua garganta no segundo seguinte, sorrindo em triunfo.
Howl estava com o rosto corado, respirando com dificuldade, mas as íris douradas cintilavam com o orgulho e uma faísca remanescente de desejo.
—Sabe que aquele pequeno truque não vai funcionar com outros adversários além de mim, não é?
Ela riu, bem humorada, e baixou as lâminas para estalar um beijo de consolo rápido em seus lábios. Eles estavam sozinhos, e por mais que o ringue fosse bastante visível para o restante da área da guarda, ela estava praticamente vazia. Safira não se importava em roubar um ou dois beijos.
—O importante é que eu ganhei.
—Você trapaceou.
—Apenas virei a situação ao meu favor.
Ele a puxou pela cintura, rosnando baixo.
—Dois podem jogar aquele jogo, Safira.
A moça abriu um sorriso lento, provocante, embainhando as sirwas no cinto e passeando os dedos pelos ombros largos de Howl com uma inocência maliciosa.
—Tudo que posso dizer é “faça o seu melhor” — ela piscou um olho, entrelaçando a mão à dele. — Agora vamos, senhor Vowen, sua uma hora já passou. Essa sua coxa precisa de uma boa compressa gela...
—Yundra!
Howl e Safira congelaram no lugar.
—YUNDRA!
Vaska.
Deusa acima, aquela era a voz de Vaska. Estava vindo da parte sul da alcateia, isso... Isso significava que os guardiões haviam retornado? Que haviam achado Skies, que não haviam? O torpor a tirou de órbita por alguns segundos.
A loba de ébano clamou pela bruxa curandeira mais uma vez, e ambos notaram algo que a surpresa com o fato de a Ônix estar ali não havia permitido que notassem antes.
Era desespero, puro e dilacerante, no tom agoniado de Vaska.
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