



Para a crepusculete que no momento está guinchando dentro de mim porque agora
pode dizer (com muitíssimo gosto) que escreveu livros sobre lobos e sobre vampiros.
E para todas que terminarão esse livro e passarão a considerar venenosa um elogio.
Conteúdo adulto.
Este livro não é recomendado para menores de 18 anos. Ele possui cenas gráficas de
sexo, violência, linguagem inapropriada e morte.
O livro faz óbvias referências abertas à mitologia romana, várias delas apresentando
veracidade histórica. Poucas palavras idiomáticas no livro são de origem fictícia. A grande
maioria foi apropriada do latim e do italiano (fosse na estruturação sonora, significante ou
gramatical), e esta autora não demonstra nada além de um grande apreço pelas culturas às
quais pertencem. *insira aqui aquele meme da lady gaga “como posso fazer disso uma
situação para afirmar que sou italiana”*
Prólogo: A Origem da Romália
Há mais séculos do que se importam em contar, o monarca de um poderoso reino teve
três filhos.
As histórias sussurravam que ele havia nascido com uma condição única — uma
maldição, diziam — que obrigava o rei e seus descendentes a beberem sangue para manterem
força e vitalidade, a se manterem longe da luz do dia e dos raios solares nocivos à pele albina
sensível. Ladranimi, murmuravam amedrontados nas villas ao barricarem as portas à noite,
quando a família real saía para caçar. Ladrões de almas.
Vampiros.
Dentre os filhos do velho monarca, o mais velho era o mais forte, a do meio era a
mais astuta, e o mais novo era o mais justo.
Apesar de unidos na infância, os três acabaram se separando durante a maturidade,
pois perceberam que apenas um deles herdaria o trono. Depois de uma tentativa brutal de
golpe de estado e a iminência de uma guerra civil provocada pela ganância por poder dos dois
irmãos mais velhos, o reino se dividiu em três polos de controle.
A Romália cresceu poderosa, mas ainda dividida e limitada, as três províncias
eternamente fadadas à paz instável ou ao conflito temporário, ameaçada pela desunião
somada à fome sanguinária de território dos reinos vizinhos.
Até ela.
A rainha com a força, a astúcia e o senso de justiça, diziam as histórias. Ungida por
Neatha, mãe dos vitrais, com veneno nas veias e sangue nas mãos, poderosa o bastante para
unir as três províncias sob um longo e próspero reinado. Tantos nomes quanto lendas a seu
respeito.
Ladra de almas. Venenosa. Assassina.
Salvadora. Justiceira. Heroína.
Bastarda. Plebeia. Soberana.
Belladonna.
I. Amaldiçoada
Minha mãe disse que me nomeou Belladonna porque desde o momento em que abri
os olhos, eles eram muito, muito pretos.
Praticamente sem íris, apenas pupilas enormes num vazio imenso de nanquim.
A criada que cuidou de mim até meus oito anos de idade, por outro lado, disse que
meu nome era esse porque minha mãe tentou se envenenar com a baga da planta de mesmo
nome para interromper a gestação. Eu a estava consumindo, contou a criada, na primeira e
única vez que tive coragem de perguntar a respeito. Sugava tanto da sua energia e vitalidade
que ela mais parecia um cadáver em vez de uma mulher que estava gerando uma vida.
Ela tentara se livrar de mim, esclareceu, com palavras duras e honestas até demais
para uma menina, porque eu era uma aberração, a cria de um homem amaldiçoado.
Estava certa, afinal, mas a tática não funcionou. Eu nasci saudável e barulhenta, sua
própria amostra de veneno para amamentar, e ela se viciou no efeito alucinógeno das bagas
das plantas. Não era a história de ninar mais bonita para atrair bons sonhos, mas diferente de
outras, era real: uma criança amaldiçoada de uma mãe delirante e um pai ausente.
Mas é claro, o que mais se esperaria de um rei?
Ele não podia nos dar atenção, tinha cidades para governar. Não podia prover do seu
tempo, tinha guerras para vencer. Não podia fornecer mais abrigo depois que cresci, porque a
validade da minha mãe como amante já tinha expirado, e as histórias de ninar se foram junto
da criada que me criou.
Ela podia ter começado o vício em bagas de beladona por causa da gravidez, mas
continuou mantendo-o porque era mais fácil alucinar de forma constante do que enfrentar a
realidade. Ela era uma estrangeira em um país preconceituoso com estrangeiros, era uma
mulher abandonada sem dinheiro ou futuro criando uma filha amaldiçoada sozinha. Era
apenas mais uma dentre milhares, dolorosamente comum e miseravelmente amarga.
Quando ela me xingava e tentava me bater, eu tentava manter isso em mente. Quando
me dizia que preferia ter morrido a engravidado de uma aberração, eu realmente me
esforçava para lembrar que ela não passava de uma pessoa muito triste e desesperada. Minha
progenitora sofrera muito mesmo na vida, e conseguira um pouco de luxo como amante da
realeza apenas para perder todo aquele privilégio por causa de uma gestação indesejada.
Mas conter a raiva e a mágoa também era muito difícil nesses momentos.
Não havia maldição nenhuma em mim, na minha humilde opinião. Havia poder, havia
força, rapidez e dons inestimáveis. Havia a beleza extraordinária que eu herdara da minha
mãe, a mesma que atraíra a atenção de um rei em primeiro lugar, com nossos longos cabelos
pretos feito penas de corvo e pele alva como o marfim dos templos e panteões.
E eu podia apostar que era o que o lorde balbuciante à minha frente achava também,
pelo modo como ele piscava ao absorver minha aparência, os lábios entreabertos e o olhar um
pouco vidrado, a careca cintilando com o suor.
— D-de onde... — pigarreou, tentando se concentrar. — De onde disse que era
mesmo, senhorita Trevoci?
Sorri, enigmática, ao bebericar vinho da taça em minhas mãos e me recostar na
cadeira estofada.
— Uma villa charmosa próxima a Santorini. Pequena, mas adorável.
Meu sobrenome não era Trevoci, e eu não vinha de uma villa próxima a Santorini,
mas eram informações vagas o suficiente para que ninguém se importasse em checar.
Com as joias em meus pulsos, dedos e pescoço, com a qualidade do tecido do meu
vestido e os cosméticos no meu rosto, a possibilidade de eu estar mentindo não passava pela
cabeça de nenhum deles.
— Ah, Santorini — uma dama com o pó de arroz já derretendo no rosto sorriu à
direita do homem que perguntara, ansiosa por atenção e por ser incluída na conversa. —
Nunca visitei as vinícolas da província, mas estou certa de que são magníficas. A senhorita
deve entender de vinhos, imagino.
— Faço o meu melhor. — Ergui a taça, sorrindo na direção do anfitrião cujo nome me
era irrelevante. — Esse, por exemplo, é divino.
Não era. Ácido demais para o meu gosto, a textura parecia barro na língua, e o tanino
da uva era tão agressivo que quase estava me fazendo chorar.
— Sofia entende de muitos assuntos. — Augustus di Satto sorriu ao meu lado, os
olhos esverdeados reluzindo na minha direção, o cabelo castanho batendo nos ombros em
charmoso desalinho. — Viajou para todo tipo de lugar, fala cinco idiomas, canta e toca como
poucos, entende de política e filosofia, dança feito um anjo. Ela é uma joia rara.
Eu armei minha expressão mais devota para ele, as bochechas coradas apenas o
bastante para me fazer parecer educadamente constrangida com o afeto escancarado.
Não tinha mais muito tempo com Augustus. Ele estava a meros dias de me propor
matrimônio, e eu teria de me livrar dele antes disso. Pensava que Sofia Trevoci era uma
jovem abastada e de boa família, visitando a cidade para passar o verão com uma tia distante,
e também pensava que estava apaixonado por ela. Achava que era correspondido.
Porém, exceto pelo dinheiro, status e prazer físico que me fornecia, di Satto era tão
substancial para mim quanto um buquê de flores.
Bonito e agradável no início, mas com uma vida útil curta.
— Ela com certeza lhe faz bem — elogiou a dama que comentara sobre Santorini. —
Parece muito melhor desde sua indisposição semana passada.
Meu acompanhante meneou a cabeça, polido, discretamente ajustando a gola do
casaco.
— É muita gentileza.
— Eu disse a ele para não passar tanto tempo cavalgando no sol sem ter se alimentado
direito — repreendi, curvando os lábios de modo carinhoso em desaprovação. — Mas parece
que sou uma joia rara o bastante apenas para ser vista, não escutada.
Ele riu ao tomar minha mão e beijar os nós dos meus dedos, balançando a cabeça, e
outros na mesa o acompanharam.
— Farei questão de obedecer da próxima vez, minha querida.
Uma senhora com safiras do tamanho de uvas gordas ao redor do pescoço sorriu
amavelmente na nossa direção.
— Vocês dois formam um lindo casal. Um colírio para os olhos nesses tempos
turbulentos.
Augustus inflou o peito discretamente, agradecendo com outro meneio de cabeça, e
fingi me embaraçar e baixar os olhos. O arranjo era útil para nós dois. Eu aproveitava sua
condição financeira e o que ela me proporcionava e ele se aproveitava da minha aparência,
me exibindo como sua prometida.
A noite foi tediosamente ostentosa e confortável após aquilo, como de costume.
Era bom que eu precisasse deixar aquele lugar logo, porque as pessoas estavam
começando a memorizar meu nome e me reconhecer de rosto. Fora isso, também já não tinha
mais graça. Mesmos bailes, mesma comida, mesma bebida e mesmos nobres. Era fácil me
deixar levar e ficar mais do que seria recomendável, mas eu não me dava ao luxo de fazer
isso mais.
Então me certifiquei de espalhar um boato de que titia retornaria em breve e eu
precisaria viajar para o sul com ela para ver alguns primos, os Conterranne; uma família rica
muito conhecida na Romália pela plantação e comércio de trigo. Todos se mostraram
devidamente compreensivos — “ah, visitar a família é muito importante” ou “sempre quis
visitar as terras Conterranne”.
E é claro “mas e o senhor di Satto?” como se o pobre do homem precisasse de mim
para afofar seus travesseiros ou limpar sua bunda. Era quando eu precisava forçar uma
expressão desolada, dizer que eram só alguns dias e bom, pelo menos poderíamos organizar
os pormenores do evento enquanto estávamos separados. Eles se distraíam fácil após isso,
porque começavam a tentar insinuar de todas as maneiras que adorariam ser convidados para
o casamento e que nos desejavam muita felicidade.
Minha paciência para os sorrisos falsos e expressões amáveis se esgotou em certo
ponto e declarei cansaço, chamando Augustus e uma dama de companhia para irmos. A
carruagem seguiu tranquila até a enorme propriedade dos di Satto, uma das maiores, mas não
a maior, das quais eu já tinha ficado. As colunas e cornijas ornamentadas entre o friso
entalhado davam um ar solene e religioso à estrutura, e eu sabia que era proposital. Os pais de
Augustus eram grandes devotos aos deuses, mas principalmente à divindade que “abençoara”
sua linhagem, Temar, o deus da guerra. O patriarca di Satto tinha lutado nas fronteiras quando
jovem, mas o filho não decidira ingressar a legião, muito para o seu desgosto.
Eu pouco me importava com as inclinações religiosas dos meus acompanhantes de
estimação, mas sempre tentava me manter longe dos fiéis enlouquecidos, e Vannalus di Satto,
pai de Augustus, era um desses.
Ele nos recebeu na entrada assim que descemos da condução, o bigode grisalho
torcido na minha direção, a túnica amarrotada com a provável andança inquieta pela casa. Ele
nem podia me culpar naquela noite, havíamos retornado bem cedo.
— Pai — Augustus franziu a testa para o modo como o progenitor me encarava. —, o
senhor já não devia estar na cama?
— Tenho assuntos pendentes com você — grunhiu, sem nem voltar o olhar para o
filho.
Eu bati os cílios, inocente, e suas pálpebras caídas se semicerraram. O velho
insuportável me odiava. Teria me expulsado dali no primeiro dia se a esposa não tivesse se
apaixonado por mim imediatamente, insistindo que eu ficasse hospedada na casa di Satto
enquanto minha tia viajava.
Augustus suspirou, beijando os nós dos meus dedos ao se despedir e seguir o pai
escadaria acima.
O mármore creme estalava sob minhas sandálias enquanto eu atravessava a sala
comunal, o segundo andar e chegava aos meus aposentos. Sorri com doçura para a serva que
me acompanhara até a porta.
— Estou terrivelmente cansada, acho que vou logo para a cama.
Ela assentiu, silenciosa e discreta como sempre, e se afastou pelo corredor suntuoso.
Esperei até não ouvir mais nada durante um ou dois minutos, e voltei para o corredor
sem emitir som algum depois de acender uma vela para dar a ilusão de que ainda estava no
quarto. Com anos de prática, eu basicamente me mesclava às sombras na mais completa
quietude. E se alguém me notasse ou escutasse... Não me custava nada silenciar esses
infelizes, também.
Quando Augustus voltou para o próprio quarto, eu já estava em sua cama.
Ele sorriu ao me ver, e me ergui preguiçosa dos lençóis macios, a expressão frustrada
com a qual ele entrara se dissolvendo quando me aproximei.
— Ele está te pressionando de novo? — indaguei, assumindo um semblante
preocupado.
Por mais que me odiasse, Vanallus era, depois de Augustus, aquele que mais
fervorosamente desejava nosso matrimônio. Ele tinha certeza de que eu era uma golpista, por
mais que eu já tivesse dado inúmeras provas de ser quem alegava — todas falsas, é claro, mas
convincentes. Vanallus queria, além de netos catarrentos e enérgicos para mimar o quanto
antes, um casamento moderno, no qual eu tinha direito aos meus bens sem ser subjugada pela
dominação da família do meu marido.
É claro que, com isso, tudo que aquele velho maldito queria era não precisar me
sustentar — e, para o azar do desgraçado, meus contraceptivos estavam meticulosamente em
dia.
Augustus ficava revoltado e eu achava adorável, mas mesmo meu suposto futuro
noivo já estava ficando impaciente. Suas mãos envolveram minha cintura, ávidas e
apaixonadas.
— Ele só está sendo paranoico, mas é doloroso esperar. — Enterrou o nariz no meu
pescoço, inspirando fundo. — Quero que seja minha logo, por inteiro.
Revirei os olhos, minhas unhas se enterrando com uma voracidade fingida em seus
braços.
— Em breve, meu amor — entoei, a voz melódica. — Minha tia chegará de Venusa
em menos de uma semana.
Era o tempo que eu tinha para aproveitar o quanto conseguisse e organizar a próxima
caçada. A próxima cidade, a próxima família rica, o próximo solteiro suscetível. Ele achava
que pediria minha mão à minha matrona em menos de uma semana, mas a verdade era que eu
estaria bem longe a esse ponto da coisa, levando algumas joias demasiadamente acessíveis
que eu sabia que a matriarca di Satto mantinha em alguns dos quartos de hóspedes.
— Às vezes parece um sonho. — Augustus ergueu a cabeça para me encarar, os olhos
vidrados, e meu sorriso suave foi genuíno daquela vez. — Que esteja comigo. Que seja tão
linda e que eu tenha tido tanta sorte. Você é absolutamente perfeita.
Eu o empurrei devagar até a cama, os movimentos lentos e ainda predatórios, a mão
livre desatando os nós do cordão na minha cintura, jogando minha palla de lado, aquela droga
de lenço enorme e calorento que eu era obrigada a usar cobrindo o corpo a noite inteira para
parecer recatada.
Ah, se ao menos me vissem agora.
— Perfeita? — provoquei, as sobrancelhas erguidas em deleite.
— Divina — Augustos arquejou baixo, os olhos em meus lábios. O que espreitava por
trás deles. — Esplêndida.
— Hmm.
Ele caiu de costas na cama, as pupilas dilatadas e a respiração rasa, acelerada. O
manto caiu aos meus pés e eu subi em seu colo, as coxas o prendendo ao colchão. Levei suas
mãos até os fechos das alças em minhas costas, e Augustus os desabotoou mais do que feliz.
O tecido se acumulou nos meus quadris e a mira dele se fixou nos meus seios marcados por
baixo da fáscia fina.
Eu tirei sua túnica, as unhas deslizando pelo peitoral definido, e o senti endurecer
embaixo de mim.
Meus lábios roçaram nos seus, apenas o bastante para incitá-lo, as mãos largas
descendo pelos meus quadris. Me movi sobre Augustus devagar, o beijo se tornando mais
faminto a cada gesto lânguido, os dedos desatando a calça e libertando o membro rijo para
guiá-lo para o meio das minhas pernas.
Para tomá-lo dentro de mim, engolindo seus gemidos abafados com a língua e os
dentes a cada vez que eu subia e descia sobre ele.
— A lua sangra esta noite? — ofegou, as íris ébrias com a luxúria e com a beladona
que ele provara dos meus lábios.
Eu sorri, cavalgando-o num ritmo delicioso.
— Alta e vermelha no céu, querido.
Augustus era um amante dedicado. Ele sempre tentava me fornecer prazer antes que
atingisse o próprio, mesmo que nem sempre tivesse sucesso, e tinha caído nas minhas graças
por isso. Talvez sentisse sua falta. Talvez eu tivesse me apegado um pouco a ele, mesmo que
não fosse o bastante para me fazer ficar.
Com certeza sentiria falta do modo como sua extensão me preenchia, o modo como
seu toque sabia dedilhar meu cerne a ponto de me faltar o ar. Nem todos os acompanhantes de
estimação que eu caçava eram bons em me satisfazer.
Nada do que faziam era tão bom quanto a parte final, no entanto.
Quando o suor encharcava nossas testas e os sons dele já não se mantinham baixos.
Pele contra pele, dentes contra presas, eu o empurrei deitado quando vi seu abdômen se
contrair. Ele agarrou minha bunda ao se arquear no colchão e me inclinei para frente, colando
nossos troncos.
— Sofia — arfou, inclinando a cabeça e expondo a curva do pescoço marcada por
cada noite em que compartilhamos o mesmo leito. — Sofia, eu... Ah...
Intensifiquei as investidas, sentindo-o pulsar e estocar na minha carne com uma
necessidade frenética. Augustus gemeu alto, e tampei sua boca ao fazê-lo gozar e cravar os
dentes em sua jugular.
Oh, sim.
Isso.
O clímax deles sempre tinha sabor de paraíso. Sempre fazia com que eu atingisse o
meu próprio, se já não o tivesse feito. A onda violenta de êxtase me estremeceu e arrebatou, e
afundei mais as presas na base da garganta de Augustus, inspirando pelo nariz em fôlegos
oscilantes a cada gole quente, glorioso.
Era preciso ter cuidado com o quanto tomava dele. Seu gosto era tão doce e rico que
ficava difícil parar. Ele era tão voluntarioso — antecipava as noites em que a lua sangrava,
como eu lhe dissera para chamar as ocasiões em que precisava me alimentar. A maioria das
minhas vítimas era colaborativa, mas quanto mais elas queriam aquilo, quanto mais se
sentiam confortáveis e desejosas, mais inebriante era o sabor. Se estavam hesitantes ou
assustadas, o gosto amargava dependendo da intensidade das sensações.
E quando eu bebia do pico de prazer que um orgasmo acarretava...
Augustus era um tolo apaixonado tão entregue que seu sangue era como néctar do
panteão dos deuses. Viciante a ponto de me fazer arriscar mais do que podia. A indisposição
dele da semana passada não fora por passar tempo em demasia no sol sem comer — fora
porque eu perdera o controle e quase o matara depois de passar alguns dias sem me alimentar.
A falta de sangue o deixara acamado, pálido.
Felizmente, era fácil chamar anemias de mal-estares. Era minha desculpa mais
comum.
Ele já tinha acabado, o corpo dócil e imóvel sobre a minha boca, o membro pulsando
de leve dentro de mim. Não tinha motivo para resistir, já que não sentia dor alguma. Aqueles
como eu conseguiam fazer com que a mordida fosse prazerosa, mas também com que doesse
como a mais impiedosa agonia. Costumava depender da nossa benevolência, ou da nossa
vontade.
E bebi até me saciar, até que seu calor e saúde rugissem com força total pelas minhas
veias, as mãos mantendo-o submisso até que terminasse.
O sabor me deixou tão anestesiada que uma parte escorreu pelo meu queixo,
manchando meu pescoço e clavícula de vermelho. Ergui o tronco, arfando suavemente, e
lambi o rastro de sangue antes que chegasse à minha fáscia e manchasse o tecido branco que
cobria meus seios.
Augustus sorria de olhos fechados embaixo de mim, inerte e extasiado. Ele precisaria
de algumas horas para recuperar a própria força. Eu o tirei do meio das minhas pernas e
ambos gememos — e foi quando a porta dos aposentos se escancarou com um estrondo.
— Demônio parasita vagabunda — sibilou Vannalus, um pilum enorme em mãos,
parado no portal e fumegando pelas orelhas. — Saia de perto dele!
Limpei o canto da boca num gesto insolente, revirando os olhos.
Augustus arregalou os dele, me tomando nos braços de modo protetor e me cobrindo
com os lençóis ao gritar para o pai:
— O que o senhor está fazendo?! — vociferou. — Deixe-nos, agora!
— Eu disse a você! — Ele inclinou a cabeça para o lado, como se falando com
alguém no corredor, e uma pressão gelada fechou as garras nas minhas costelas. — Uma
ladranimi em minha casa! Essa aberração bastarda, na cama do meu filho!
Suspirei. Quando se parava para pensar, aquele era um termo um pouco
preconceituoso.
Ladranimi. Ladra de almas.
Porém, se ele sabia que eu era uma vampira, não uma simples golpista, isso
significava que tinha...
Saltei de pé mesmo seminua, arreganhando as presas com o vestido amontoado na
cintura quando uma figura encapuzada de armadura encouraçada amarela adentrou o quarto e
meneou a cabeça para o patriarca di Satto. O sangue de Augustus agora pulsava em meus
ouvidos junto da adrenalina, bombeando com força renovada para o coração fajuto em meu
peito.
À danação com o velho. Ele tinha convocado cacciatori.
— Agradecemos pela denúncia — disse o homem, e ergueu uma besta na minha
direção. — Estamos atrás dessa aqui já há um tempo.
— Não! — gritou Augustus.
Minha mente se enrolou ao redor da de Vannalus como um chicote, meus dons
dobrando sua vontade sem esforço, o comando não lhe dando escolha alguma ao incitar de
súbito:
Ataque!
A mão do homem se moveu com a experiência de um legionário, a ponta de lança do
pilum se fincando na perna do cacciatore com uma força admirável para um velho
empoeirado. O homem gritou, furioso, mas a besta ainda estalou com um disparo, e a única
coisa que impediu o dardo de se cravar na minha pele foi o golpe de Vannalus, que
desestabilizara a mira do sujeito. A coisa atingiu o mármore atrás de mim com um estampido
seco, vibrando ameaçadoramente na pedra por alguns segundos com a intensidade da rajada.
Analisei minhas parcas opções em desespero.
Portas: sem chance, bloqueadas. Janelas, talvez? Eu estava forte após me alimentar de
Augustus, mas ainda era uma queda de pelo menos três varas até o chão, isso se outros
cacciatori não tivessem cercado a propriedade.
Deuses, aquilo iria doer.
Meu amante tentava se erguer da cama mesmo fraco o suficiente para mal conseguir
levantar um braço. O pai dele acertou outra investida no cacciatore e o homem rosnou em
incompreensão, empurrando o velho di Satto para longe com brutalidade. Vannalus podia ser
experiente, mas não tinha mais a vitalidade do seu oponente.
— Vá logo! — Augustus gritou para mim, os olhos suplicantes e tão em pânico
quanto eu. — Sofia, fuja!
O cacciatore ergueu a besta outra vez.
Eu já estava me lançando pela janela.
O vidro se quebrou ao meu redor com o impacto violento, e eu me encolhi enquanto o
ar sibilava em meus ouvidos e o chão do gramado ficava cada vez mais próximo. Dardos
voaram acima da minha cabeça quando me choquei com o chão rolando, um grunhido de
irritação deixando meus lábios com a pancada dolorida ao imediatamente me levantar e voltar
a correr.
Apenas para ser derrubada outra vez.
— Eu a peguei! — gritou um deles ao me prensar contra o chão, as mãos prendendo
meus pulsos com força.
Saia de cima! Berrei em sua mente e olhos vidrados de pronto se seguiram ao
comando quando o cacciatore se ergueu de pronto, para a minha inacreditável sorte. Talvez
ele fosse um novato e não tivesse ganhado seu anello de proteção ainda. Também faltavam
algumas horas para o amanhecer, o que tinha sido irregularmente estúpido na emboscada dos
cacciatori.
Os deuses estão do meu lado esta noite.
Qualquer que fosse o motivo, apenas me aproveitei dele, notando mais figuras
encapuzadas se aproximando pelo jardim traseiro.
Atrase seus companheiros, ordenei ao que me atacara. Não deixe que se aproximem
de mim.
E não fiquei para verificar se tinha obedecido, já que o maldito no quarto de Augustus
ainda tentava me acertar com dardos envenenados pela janela. Somente girei e disparei para a
floresta nos arredores da propriedade, sumindo na escuridão na qual eu me acostumara a
viver, a caçar. Era minha casa e minha proteção.
Aquela era minha sina e minha vida. Minha benção e minha maldição.
Viver nas sombras, me alimentar de sangue; me provinha força, velocidade,
longevidade.
Mas também colocava caçadores no meu encalço, me mantinha em constante fuga.
Não pela primeira vez me revoltei por dentro, o peito ardendo com indignação e cansaço.
Não era justo, porque eu merecia muito mais. Era capaz de muito mais. O pouco sangue que
era mesmo meu correndo em minhas veias deveria ter colocado o mundo aos meus pés.
E eu me recusava a acreditar que ao invés disso o mundo me colocaria aos pés dele.
Trinquei os dentes na noite fria, determinada a correr seminua por horas se preciso,
até que a vitalidade que Augustus fornecera se esgotasse.
Ainda havia muito mais para mim lá fora. Eu conquistaria pedra por pedra no
caminho caso preciso.
Eu não era Sofia Trevoci, ou um parasita vagabundo, ou uma aberração bastarda.
Meu nome era Belladonna.
E o mundo ainda tremeria diante do som dele.
II. A Última a Restar
— Precisa de mais alguma coisa, querida?
A servente da taberna sorriu para mim depois de me dar os trocados que requiri em sua
mente, dois dentes da frente faltando no sorriso.
Contive o arrepio de asco e retribuí o gesto a contragosto.
— Não, obrigada. — Armei uma expressão humilde. — A senhora já foi extremamente
gentil me abrigando noite passada, não quero abusar da hospitalidade.
Também não quero deixar rastros nessa pocilga repulsiva.
— Tem certeza que quer sair a esta hora, senhorita? — Os olhos cinzentos e
preocupados da velha deslizaram na direção da porta, o queixo pontudo se erguendo. — Está
tarde. Essas bandas são perigosas para uma dama desacompanhada, principalmente à noite.
Diabos e malfeitores rondam pela estrada em busca de presas fáceis.
Ah, eu estava contando com isso — eu era uma daquelas buscando presas fáceis, afinal.
Pelo menos conseguiria um pequeno aperitivo ou dois caso fosse abordada.
— O cocheiro de aluguel será minha companhia.
A mulher bufou e deu uma risadinha, mostrando a quase literal janela entre seus
incisivos.
— Optimus correrá mais rápido que os cavalos na direção oposta caso algo venha a
acontecer — resmungou. — Grita mais agudo que uma moçoila, aquele lá.
— Estou confiante quanto às minhas chances — insisti, impaciente. — Os deuses
guardarão meu caminho.
— Rezarei a eles por você, senhorita.
A vontade de revirar os olhos foi quase inevitável, mas apenas apertei a mão dela em
agradecimento e deixei a hospedaria abafada e barulhenta, baixando a cabeça e apertando a
palla, quase um manto puído em vez de junto ao corpo ao subir na carruagem caindo aos
pedaços.
Trinquei os dentes ao me ajeitar no banco enquanto o condutor atiçava os cavalos e o
veículo sacudia estrada à frente.
Todos os meus baús tinham ficado na propriedade dos di Satto, incluindo minhas
economias. Eu estava acostumada a carregar pouco comigo, mas ser forçada a deixar coisas
para trás ainda me enraivecia, principalmente por causa dos malditos caçadores reais de
vampiros.
Às vezes era suficiente lembrar que eu não tinha mantido meus bens, mas pelo menos
mantivera minha vida.
Hoje não era uma dessas vezes.
Eu não tinha me programado para um imprevisto daquela magnitude. Estava rumando
para Enália, a cidade abastada mais próxima, com expectativas de iniciar uma caçada assim
que conseguisse me estabelecer e pensar com mais calma, mas ainda era odiosamente frustrante
precisar me submeter àquela humilhação. Fugir seminua por léguas para escapar de cacciatori
e achar abrigo antes que o sol nascesse tinha feito estragos consideráveis na minha dignidade,
e a mera lembrança do ocorrido era suficiente para me fazer fumegar de ódio. Eu precisara me
esconder numa hospedaria nojenta de quinta, roubar comida e roupas alheias e usar minhas
habilidades para que não me cobrassem a estadia — que eu não tinha como pagar de todo
modo, sem um mero denário no bolso após a corrida alucinada.
Eu conseguiria ter lidado com um ou dois deles, mas aquilo na propriedade di Satto
fora todo um contingente. Eles estavam mais focados, mais inclementes e, desde o ataque
estrangeiro que cobrara a vida do rei e do príncipe herdeiro, cada vez mais eu ouvia sobre
emboscadas bem-sucedidas a ladranimi nos últimos tempos. Se eu sentia pela morte dos
homens que deviam ser meu pai e meio-irmão? Não mesmo, considerando que nenhum dos
dois tinha dado a mínima para mim durante a última metade do século, mas pelo menos podia
me sentir grata pelos dons que a linhagem deles me concedera.
Por outro lado, minhas habilidades me deixavam relaxada — mesmo que alguém
descobrisse que eu era uma vampira, eu conseguiria ordenar com facilidade que esquecessem
desse fato antes que me denunciassem às autoridades —, mas o incidente de ontem fora um
balde de água fria nesse descaso.
Atirei a palla no banco desgastado e fedorento ao meu lado, irritada com o calor e a
mediocridade da carruagem de aluguel. Era pequena e apertada mesmo apenas comigo de
passageira, os assentos eram duros e o aspecto dos papéis de parede, deplorável. Eu me
acostumara aos veículos luxuosos e confortáveis dos di Satto e de todos os meus prévios
acompanhantes de estimação, e retornar à realidade miserável da minha verdadeira condição
era desagradável no mínimo, revoltante no máximo.
Deuses do panteão, havia algo esbranquiçado manchando o banco à minha frente e com
toda a certeza não era leite.
Parasita vagabunda, Vanallus di Satto vociferara para mim.
Bom, era preferível ser uma parasita vagabunda do que uma pobretona desesperada,
obrigada.
E por isso eu precisava de mais cautela. Estar duas vezes mais preparada, sempre.
Porém, como se as tecelãs do destino apreciassem rir das minhas convicções, a
carruagem estancou com um solavanco e um relinchar baixo de cavalos. Vozes masculinas
soaram lá fora, e eu suspirei com a irritação imprevista. Minha audição (assim como o restante
dos sentidos) ficava limitada quando minha dieta de sangue seguia o mesmo exemplo. Embora
eu nem estivesse com tanta sede assim, pelo menos conseguiria repor as energias após o esforço
desnecessário da noite anterior.
O que fez com que eu me retesasse no assento, contudo, foi o fato de que eram vozes
masculinas em demasiado.
O sangue que eu bebera de Augustus rugiu nas minhas veias quando minha pulsação
acelerou diante da proximidade de passos pesados. Desembainhei a adaga que roubara de um
desavisado na taberna do cinto com um gesto silencioso — quase nunca precisava de uma
arma, mas gostava de mantê-las ao alcance.
Está sendo paranoica, Belladonna, tentei me convencer. É só um grupo de ladrões ou
uma ronda habitual de legionários. Atraia o primeiro deles para dentro com a promessa de
uma boa foda, se alimente e mande-o para fora com uma lembrança falsa e um sorriso idiota
no rosto para que a deixem ir.
Mas o problema sempre estava nos números. Quando eu era mais nova e ainda não
sabia planejar minhas caçadas, viagens noturnas inesperadas e abordagens de desconhecidos
como aquelas eram muito mais comuns. Às vezes eu conseguia ludibriar apenas um, e às vezes
todos queriam participar da brincadeira. Meu poder não funcionava com vários ao mesmo
tempo, e eu já tinha passado alguns apertos tentando me livrar de homens imundos em estradas
desertas.
A maioria desses homens terminara morta no fim, então apenas apertei o cabo da adaga
entre os dedos e me preparei para um golpe certeiro na jugular antes de correr.
Os passos pararam na lateral da carruagem.
A porta à minha direita se abriu, e a luz de uma tocha iluminou as feições de um sujeito
de capacete, cerdas azuladas despontando da parte superior da peça, e a armadura de couro
simples cobrindo seu corpo robusto foi fácil de identificar.
Escondi a adaga nas saias discretamente, abrindo um sorriso aliviado e levando a mão
ao peito num gesto teatral.
— Você me assustou, soldado. — Mantive a voz suave, inofensiva. — Houve algum
tipo de acidente na estrada?
O legionário estreitou os olhos para mim, erguendo a tocha para me enxergar melhor e
me observando por muito mais tempo do que teria sido considerado educado. Eu estava
acostumada, é claro, mas o modo com o qual aquele homem me escrutinava estava errado —
não era de modo lascivo ou mesmo curioso.
Era desconfiado.
A insegurança contraiu minhas entranhas e o sorriso oscilou nos meus lábios.
— Soldado?
Ele apenas inclinou a cabeça para o lado, assentindo para alguém atrás de si.
— É ela.
A outra porta do veículo foi escancarada com violência de súbito, e havia uma besta
apontada para o meu rosto no instante seguinte.
Quando o dardo disparou, eu já tinha avançado em cima do legionário.
A lâmina da minha adaga se cravou na parte macia do pescoço dele enquanto a rajada
atingia o lugar no qual eu me encontrava milésimos de segundos antes, e o soldado caiu para
trás com um gorgolejar sangrento antes mesmo de conseguir arregalar os olhos.
— Não a deixem escapar dessa vez! — uma voz rosnou.
Saltando por cima do legionário morto para fora da carruagem, eu me vi rodeada de
capas amarelas e cercada de todos os lados. Armaduras reluzentes com o emblema da coroa, o
CSPQR em dourado no centro do peito, armas e escudos em formação fechada e bloqueando
minhas saídas.
Cacciatori.
Como tinham me encontrado? Eles nunca faziam perseguições específicas dessa forma,
apenas caçavam quando convocados, quando uma denúncia de suspeita de ladranimi nas
redondezas era feita. Eu não podia ser tão azarada assim.
Arreganhei os dentes, brandindo a adaga na direção do caçador mais próximo com
firmeza. Aquele não seria o meu fim. Eu me recusava a aceitar. Não morreria daquele jeito,
naquele lugar, naquela hora.
Mas uma picada dolorosa se espalhou pela minha pele a partir da minha lombar, e um
arquejo de surpresa deixou meus lábios.
Não desse jeito. Não aqui. Não agora.
Não.
Com a visão embaçando e os membros amolecendo, tudo que consegui fazer foi
amaldiçoar baixinho antes de me agarrarem pelos braços quando meus joelhos falharam.
Não.
Tudo ficou preto.
(...)
Acordar num quarto luxuoso com certeza não era o que eu estava esperando após aquele
confronto.
Algemas, uma masmorra, torturas e uma ocasional morte dolorosa, provavelmente, mas
não lençóis de seda.
Por outro lado, ninguém me veria reclamando.
O teto da cama de dossel tinha ondas e conchas arredondadas entalhadas na madeira
reluzente e os travesseiros cheiravam a erva doce, macios como se um milhão de fios de linho
gotarco tivessem sido entremeados na colcha clara.
Onde na danação eu vim parar?
Antes que eu conseguisse me situar por inteiro, entretanto, vozes abafadas soaram de
fora do cômodo, bem à porta:
— ... a viram usá-los?
— Não, mas a reconhecemos de...
— Não é o suficiente. — O timbre grave se elevou alguns tons ao interromper a sentença
anterior, irritado. — Resta apenas uma bastarda Sarelli no reino inteiro, e juro que se tiverem
trazido a errada, eu...
Meu peito pareceu estar sendo comprimido por um bloco de mámore.
Impossível.
Uma terceira voz, provavelmente a de um criado ou servo, se sobrepôs à discussão
acalorada.
— Milorde, a carruagem do senador Dicello acabou de chegar.
Um exalar alto e contido, como se aquela voz grave estivesse tentando controlar o
temperamento.
— O receberemos na entrada.
As vozes e passos se distanciaram, e o único som restante nos arredores foi meu
batimento cardíaco desenfreado ribombando em meus ouvidos. Meus olhos vidrados passaram
pela cama esculpida em pedra com dossel, pelo marfim branco imaculado nas paredes e chão
liso, pelas cortinas pesadas com puxadores dourados e a mobília ricamente decorada com
padrões sobressalentes delicados, mas não que tivessem absorvido muita coisa.
Tudo em que conseguia pensar era que sabiam quem eu era.
Quem quer que fossem aquelas pessoas, elas estavam me procurando.
Por quê?
Eu nem tinha ideia de que mantinham registros dos filhos ilegítimos do falecido rei.
Pelo que minha mãe contava, não eram poucos, porque o antigo monarca era famoso pelos
casos indiscretos e amantes pelo reino; a maioria dos nobres da Romália era. Mas se aquele
homem dissera a verdade e eu era a última bastarda de Caius Sarelli no reino...
Havia algo de muito errado acontecendo, e eu não queria ter parte alguma naquilo.
Tentando controlar o nervosismo, meu foco esquadrinhou o quarto em busca de
qualquer coisa que pudesse me servir de arma. Eu faria o próximo servo ou soldado a entrar no
cômodo me deixar sair e guiar até a saída, depois correria até a villa mais próxima e me
esconderia até segunda ordem — mesmo estando de camisola, percebi com uma careta, ao
baixar o olhar e ver que alguém tinha trocado as roupas puídas roubadas da noite anterior por
uma linda peça para dormir, macia e confortável.
Bom, pelo menos eu esperava que toda a coisa tivesse ocorrido na noite anterior.
Com o que quer que tivessem me apagado, eu não sabia por quanto tempo o torpor tinha
durado ou há quanto tempo estava inconsciente. A sede ainda não tinha começado a arranhar
minha garganta, mas dias podiam ter se passado, não horas, e a possibilidade fez uma sensação
incômoda se acumular na base do meu âmago.
Quem quer que fossem, eu faria com que se arrependessem.
Antes, no entanto, eu teria que fugir — outra vez — sem ser vista ou recapturada.
Porém, quando minha mão estava se fechando ao redor de um peso de papel na mesa
de cabeceira ao meu lado, a porta principal do quarto se abriu e cinco homens entraram.
Eu saltei contra a parede, a peça de quartzo erguida em riste no punho fechado,
preparada para arremessar a coisa no que ousasse se aproximar primeiro.
Quatro deles pararam na entrada, e apenas um demonstrou surpresa diante da cena; o
de gibão fino. O quinto, notei, era apenas um criado, identificável pelas roupas de menor
qualidade e postura servil, que não fez nada além de entrar, me ignorar, abrir as cortinas e se
postar num canto. Me encolhi por reflexo, mas apenas a luz tênue de um crepúsculo entrava
pela vidraça grossa à direita da cama.
— Está acordada. — O sujeito mais baixo e mais velho, calvo com olhos azuis
penetrantes e uma careta permanente nas feições alvas enrugadas cobertas por um cavanhaque
longo e alinhado no queixo, me analisou de cima à baixo com um semblante nada
impressionado. — Ótimo.
Aquilo que ele estava usando era uma toga? Apenas anciões, imbecis e pessoas em
ocasiões formais usavam togas.
— É ela, com toda a certeza — um segundo homem resmungou, e aquele eu reconheci,
muito para o meu desgosto, mas não que a enorme cicatriz de mordida no maxilar e a farda de
elite dos caçadores reais de vampiros fossem fáceis de esquecer. — Estamos atrás dessa aí há
anos.
Sartre Diavolo, grandessíssimo idiota e líder dos cacciatori, me encarou com todo o
desprezo mútuo que eu retribuía a ele. O homem era um cachorro com um osso e um
brutamontes violento, e realmente estava atrás de mim há anos.
Os cacciatori eram um modo de manter o povo sob controle, tão calmo quanto possível
sob a regência de criaturas que bebiam sangue, que se alimentavam deles para se manterem
fortes, jovens, poderosos. Era um esquema bastante simples, na verdade. A nobreza ladranimi
era civilizada, temida; os cacciatori serviam a ela, os agentes que controlavam a endemia que
eram os bastardos como se fossem pragas, não vidas. Meio vampiros, meio humanos,
descontrolados e selvagens, o verdadeiro perigo e um tipo de aberração da qual os nobres se
envergonhavam, mas também não conseguiam parar de prover.
É claro que a parte do descontrole e da selvageria era mentira — a maioria era, pelo
menos. Quando um ladranimi, mesmo um híbrido de humano e vampiro, não era ensinado ou
não aprendia a lidar com a fome e com as próprias habilidades naturais, as coisas tendiam a
ficar feias. Infelizmente, era o que mais acontecia; pais humanos em sua maioria tentavam se
livrar de bebês ladranimi bastardos largando-os em orfanatos e, se não o fizessem, ainda assim
reprimiam os dons da criança a todo custo ao longo da vida dela, pensando que isso a protegeria
do medo agressivo de outras pessoas, que a esconderia de cacciatori.
Porém, contê-las — as habilidades inerentes, a natureza vampira — nunca funcionava.
Tudo o que a tática acarretava era algum incidente trágico no qual o ladranimi já crescido
terminava enlouquecendo de sede, machucando seriamente ou matando alguém por causa da
ignorância quanto às próprias habilidades.
Eu sempre soube quem era, entretanto, e nunca me deixei assombrar pelos meus
poderes ou pelo que era capaz de fazer. Se tanto, essas eram as únicas coisas me mantendo viva
até ali, por que diabos as rechaçaria ou renegaria?
Era por isso que nas poucas emboscadas — talvez duas ou três — nas quais Diavolo
estava presente e eu fora abordada, em nenhuma delas o infeliz tinha conseguido me pegar.
Até agora, é claro.
— Se é ela ou não, isso ainda há de ser comprovado. — A voz grave que eu ouvira
antes por detrás da porta, vinda do homem ao centro do grupo, transpassou minha pele com um
arrepio.
Quem quer que fosse, aquele era a autoridade máxima ali. Estava no porte dos ombros
e da coluna, na qualidade das roupas e joias, nas mãos orgulhosamente unidas atrás das costas.
Uma túnica e capa roxa — a cor dos abastados — ostentosas cobriam o peitoral largo e calças
escuras envolviam as pernas musculosas. Apesar do cabelo castanho levemente grisalho, os
olhos escuros e o rosto pálido me disseram tudo que era preciso saber.
Ladranimi.
Aquele homem era um vampiro, como eu — exceto pelo fato de que provavelmente era
um nobre legítimo.
A ascendência humana da minha mãe me provera mais resistência à luz do sol do que
um ladranimi de sangue puro, e por isso minha pele não era tão clara (o que me ajudara a passar
despercebida durante todos aqueles anos). O sujeito à minha frente, por outro lado, exalava
poder e imponência, e não tive dúvidas de que a linhagem dele estava limpa de qualquer gota
de sangue misto. Embora aparentasse estar apenas no fim da primeira metade de século, devia
ter no mínimo duzentos anos de idade, se não mais.
E, porque podia apostar que quem ditava as ordens ali era ele e eu não era nenhuma
tola, foi ao ladranimi que me dirigi ao indagar, desconfiada;
— Com todo o respeito, milorde, o que quer de mim?
Um pequeno sorriso repuxou o canto dos lábios do nobre, o rosto bonito e severo
suavizando muito de leve, mas o gesto não funcionou em nada para me tranquilizar.
— Bela, eloquente e perceptiva. Talvez ainda tenhamos uma chance, afinal. — Fixou
os olhos na minha tentativa pífia de arma. — Largar o peso de papel seria um bom começo,
minha cara.
Embora os elogios tivessem amaciado meu ego, não obedeci, meus dedos se
comprimindo ao redor da peça com mais empenho.
Apenas para tê-la arrancada da minha mão por uma força desconhecida e vê-la sendo
atirada do outro lado do aposento com um ruído seco.
O medo fechou minha garganta.
Nem todos os ladranimi tinham poderes bem desenvolvidos como os meus, mas aquele
claramente não era um deles. Eu vira poucos com aquele tipo de habilidade — telecinesia —,
mas preferia ter continuado dessa forma, alheia aos dons de mover objetos com a força da
mente de certos vampiros por aí.
De que uso seriam meus poderes de influência mental agora? Nobres como aqueles
tinham anelli para bloquear habilidades ladranimi individualmente, assim como os cacciatori
com patronos e matronas poderosos. Então, dos homens naquela sala, dois deles eu já sabia
que não conseguiria controlar (Diavolo e o nobre), o que não estava colaborando em nada para
manter minha inquietação sob controle.
Contudo, por mais desesperada que estivesse para fugir, tentar usar minhas habilidades
poderia não resultar em nada e somente acabaria confirmando minha identidade.
E talvez, apenas talvez, se achassem que eu não era quem pensavam, esses desgraçados
sádicos me deixassem ir.
— Agora que resolvemos essa parte — ele continuou, inexpressivo diante do temor
cauteloso em minhas feições. — Qual é o seu nome, minha cara?
— Reginna. — Nem ao menos hesitei.
Teoricamente Não era mentira. Meu nome completo era mesmo Prima Belladonna
Reginna Vicinus Sarelli.
— É mesmo? Bom, senhorita Reginna, temos um requisito para você. — A seriedade
tomou o rosto do homem. — Está vendo aquele servo? — Apontou para o homenzinho esguio
no canto da sala. — O nome dele é Pillus.
O servo tirou uma adaga do cinto, o fio de corte cintilando de forma inquietante.
Tentei me afastar mais, mas já estava completamente prensada contra a parede atrás das
minhas costas. Mais um pouco e eu me dissolveria no marfim.
— Pillus tem ordens para matá-la em poucos instantes, e a única que pode impedi-lo é
você.
Uma estatueta pontuda e sólida de Ontune, o deus dos mares — será que estávamos em
Minari? —, chamou minha atenção em cima da cômoda à minha esquerda, e avancei na direção
da coisa para usá-la como arma de defesa no mesmo segundo.
Apenas para ter os membros paralisados por aquela força invisível que aquele homem
dominava. Era uma pressão desconhecida nos músculos e tendões, como se meu próprio corpo
estivesse imobilizado de dentro para fora e não respondesse a comando algum.
— Me largue! — Lutei contra as amarras de poder, em pânico, à medida que o servo se
aproximava mais e mais, erguendo a adaga.
Eu poderia sobreviver a uma ferida mortal se estivesse no auge da minha força — ainda
mais se conseguisse me alimentar de sangue logo após o incidente.
Nenhum dos casos era o meu atual.
— Escute bem — o nobre estalou a língua —, como descendente direta da linhagem
real, a garota que procuramos possui habilidades únicas de manipulação e controle mental,
habilidade exclusiva da família Sarelli. Se não for essa garota, não terá mais utilidade para nós
e Pillus terá nos feito um favor ao se livrar do incômodo que seria ter de matá-la.
— Pare, eu não fiz nada! — esganicei, sem parar de tentar me debater. — Sou inocente!
Diavolo bufou de forma irônica, e o homem sorriu, conivente.
— É uma pena, então.
O servo se assomou sobre mim, a adaga erguida na direção do meu coração.
Filhos de uma puta.
Tentei contornar o inevitável.
Largue a lâmina e diga que não consegue fazer isso, minha voz ordenou na consciência
do criado.
Ele obedeceu de prontidão, deixando a adaga cair e se virando para seu mestre com
uma expressão atormentada.
— Não consigo fazer isso, Milorde — implorou. — Ela diz ser inocente.
O sorriso do ladranimi se ampliou.
Danação me queime.
— Obrigado, Pillus.
— Eu disse que era ela — grunhiu Diavolo, e desejei marcar o outro lado do seu maxilar
com uma cicatriz ainda pior.
— Estávamos atrás de você há semanas, Belladonna. — O homem do gibão, o mais
jovem entre os quatro e provavelmente oriundo de Venusa graças à pele preta e as feições
robustas, avançou um passo com as sobrancelhas escuras franzidas para mim. — Não queremos
lhe fazer mal.
A incredulidade preencheu minhas feições quando alternei o olhar da adaga no chão
para o criado subserviente ainda parado próximo a mim. Me perguntei se por acaso me
tomavam por uma idiota.
— Precisávamos ter certeza de quem era — cavanhaque resmungou, aparentemente tão
descontente quanto eu a respeito do desenrolar de eventos.
— E agora que temos — sorriu o líder nobre, claramente satisfeito —, acho que
podemos concluir as apresentações. Salvattore Castelli, cônsul e vice-regente de Minari, ao seu
dispor.
— Senador Pietro Zafonni — disse o velho.
— Senador Marcus Dicello — terminou o mais novo, com um inclinar gracioso de
cabeça.
Isso fez minha descrença raivosa chiar, esmaecer e dar lugar a um assombro hesitante.
Deuses do panteão.
Apenas alguns dos ladranimi com mais poder e influência no reino inteiro, incluindo o
vice-regente da província mais rica do território, reunidos num cômodo comigo. Toda a
Romália sabia quem era Salvattore Castelli — e isso provavelmente confirmava que estávamos
mesmo em Minari, região que aquele homem era responsável por governar.
A mesma da qual eu fizera questão de manter definitiva distância até então.
— É uma honra para nós finalmente conhecê-la. — Salvattore acenou com o queixo.
Não comprei aquilo nem por um segundo.
O senador Dicello começou, unindo as mãos na frente do corpo com pesar:
— Como cidadã do reino, deve estar ciente da tragédia que nos acometeu há quase dois
meses.
A morte da família real — do que restara dela, pelo menos: meu pai e adorado meio-
irmão, rei e príncipe herdeiro da Romália. Desde então, o reino estava em luto e a linha
sucessória estava um caos, já que os assassinatos tinham vindo em péssima hora.
A guerra por território com a Sátria, ao leste, estava se agravando como nunca antes, e
as relações diplomáticas com a Bravatta, terra nativa da minha mãe, a nordeste, se encontravam
terminantemente instáveis.
Nada daquilo era problema meu, contudo, porque eu não passava de uma bastarda,
então apenas ergui uma sobrancelha na direção do homem, como se inquirindo “e daí?” com
os olhos.
Ele suspirou alto.
— Num momento tão frágil da nossa história, tudo que precisamos agora é de uma
distração, Belladonna... Precisamos que a senhorita seja essa distração, mais especificamente.
Meu olhar se alternou de um para outro, sem a mínima ideia do que poderiam estar
falando a respeito. Eu já tinha sido forçada a me delatar, de jeito nenhum facilitaria para eles
depois de todo aquele teatro. Minha estratégia sempre seria mostrar o que as pessoas queriam
ver, e eu ainda não sabia o que os desgraçados à minha frente desejavam enxergar em mim.
— Do que estão falando? — Mantive o tom neutro, retendo a raiva branda.
— Queremos lhe fazer uma oferta, Belladonna — o senador Dicello parecia de longe o
mais solícito, disposto a me fazer colaborar pacificamente. — Queremos que seja um meio
vantajoso para um fim necessário.
Os olhos escuros de Salvattore Castelli pareceram perfurar a lateral do meu rosto até
que eu girasse e voltasse a atenção para o vice-regente e suas palavras suaves, responsáveis por
deixarem meus joelhos bambos com a sentença que deixou seus lábios:
— Queremos fazer de você a princesa herdeira da Romália, minha cara.
III. Mentiras, Manipulações, Marionetes
A risada de deboche me escapou de forma involuntária.
Quando vi que nenhum deles estava rindo comigo, minhas sobrancelhas lentamente
foram se erguendo até quase desaparecerem na raiz do meu cabelo.
Isso só podia ser uma brincadeira de mau gosto.
— Então vocês me perseguiram, sequestraram, doparam e coagiram apenas para me
pregar uma peça ridícula dessas? — Apontei na direção dos quatro, cínica. — E eu pensando
que políticos tinham mais o que fazer.
O servo ergueu uma sobrancelha sutil na minha direção como se dissesse “pensou
mesmo?” e eu quase achei graça, mas por pouco não xinguei alto e tapei a boca logo em
seguida, já que aquela resposta espirituosa não corroborava muito com a pose inofensiva e
ingênua que eu estava tentando passar.
— Jovenzinha insolente. — O pescoço do senador Zafonni assumiu um tom
avermelhado com a indignação.
Em vez de revirar os olhos, contudo, apenas me encolhi como se o desrespeito houvesse
sido um deslize.
— Gostaríamos de poder dizer que tudo isso não passa de uma piada, Belladonna, mas
tempos desesperadores exigem medidas drásticas — Dicello assumiu a dianteira dos
esclarecimentos outra vez.
— Não teríamos desperdiçado todos esses recursos na sua busca a troco de uma
pegadinha frívola — retrucou o velho.
Sim, bom, era exatamente o que eu teria pensado se a questão do “queremos te tornar
princesa herdeira” não tivesse surgido. Por mais absurda que uma pegadinha frívola fosse, virar
realeza assim de repente era loucura das mais inacreditáveis.
Não era?
— Mais um pouco dessa instabilidade sucessória vai iniciar uma guerra civil. — Os
olhos castanhos de Dicello eram pacientes, ainda que incisivos. — O Senado não consegue se
decidir entre as soluções para reestabelecer a linhagem real, então uma parcela dele se decidiu
por procurar um dos filhos Sarelli ilegítimos e colocá-lo no trono até que a situação se acalme.
Mantive o queixo no lugar com dignidade, por mais que eu quisesse escancará-lo.
Uma parte minha ainda estava esperando que começassem a rir e delatassem o teatro.
— E se decidiram por mim?
Eram mais tolos do que eu tinha previsto. Ninguém ali havia lido minha ficha?
— Não tivemos escolha, na verdade — Zafonni pareceu desgostoso em admitir.
— Todos os bastardos Sarelli do reino foram caçados e mortos nas últimas semanas —
revelou Dicello, sombrio.
O quê?
Os boatos dos vários ataques bem-sucedidos a ladranimi tinham fundamento, então. Eu
só tinha pensado que as mortes eram fruto dos cacciatori, mas se não eram...
— Todos, menos você — completou Diavolo, soando não muito alegre a respeito. —
Os responsáveis muito provavelmente foram espiões sátrios a comando do Rei Arkhótos, numa
tentativa de nos desestabilizar ainda mais, mas felizmente conseguimos resgatar a senhorita, a
última criança Sarelli ilegítima a restar, antes que fosse pega.
Não havia resposta em minha língua, palavras na minha mente.
Princesa herdeira da Romália.
Eu.
Deuses do panteão, não ousem me acordar agora.
Por mais que por fora eu tentasse me mostrar controlada, não havia nada de controlado
no ritmo da minha pulsação naquele momento. Se eu continuasse com todos aqueles surtos
frequentes de adrenalina, a energia vital que o sangue de Augustus me dera se esvairia do meu
organismo muito mais rápido do que o razoável.
Princesa herdeira.
De toda a Romália.
Não seja tola, Belladonna, minha mente se eriçou em alerta. Se é que estão dizendo a
verdade, o acordo deve ser ainda mais vantajoso para eles do que para você.
Por mais que eu não soubesse como isso poderia ser possível.
Princesa.
Eu.
— Seria temporário? — Medi o tom de voz com muito cuidado, expressando
insegurança em vez da mais completa euforia borbulhando no meu âmago.
— Seria temporário — confirmou Salvattore, e toda aquela euforia despencou nas
minhas entranhas com um desapontamento ardente. — Porque é claro, quando decidirmos e se
você se mostrar digna, será coroada rainha, minha jovem.
Não consegui controlar o pequeno arquejo que me escapou daquela vez.
Princesa herdeira, e então coroada rainha.
Eu precisava ter ouvido errado. Quem eram aqueles homens? Será que podiam mesmo
mandar e desmandar no reino inteiro? Colocar uma bastarda desconhecida no trono e chamá-
la de princesa, então de rainha? Eu tinha sangue real, sim, mas isso só fora motivo de
perseguição e temor durante toda a minha vida. Era como funcionava na Romália: ladranimi
de sangue puro eram quase divindades, nobres ricos e respeitados, e as crias ilegítimas dessas
quase divindades eram caçadas e exterminadas, consideradas monstros e aberrações.
Eu era considerada um monstro e uma aberração até poucas horas atrás.
E agora me tornaria a maldita de uma princesa.
A futilidade obsessiva ridícula da minha mãe começava a valer a pena pela primeira
vez em décadas.
— Eu não entendo. — Expressei confusão e assombro para testar suas reações, por mais
que tudo que eu quisesse fosse berrar “tragam a tiara, desgraçados”.
— Não há tanto assim para entender, garota — Zafonni resmungou. — Você obedecerá
ao Senado e agirá de acordo com as nossas instruções na corte. Se fizer isso bem, elevaremos
o seu título a monarca. Fim.
Fim, ele disse, e quase bufei.
É claro que esse não era o fim. Havia uma área cinzenta e inexplorada gigantesca em
“obedecer ao Senado e agir de acordo”, mas eu estava disposta a colaborar. Malditos deuses
do panteão, eu estava disposta até a casar com aquele velho babão detestável na minha frente
se isso significasse me tornar princesa. A solução era simples: eu seria coroada rainha após
brincar de obedecer, o toleraria por alguns anos para que não duvidassem da minha lealdade e
arranjaria algum jeito de assassiná-lo sem me enquadrar como suspeita.
Eu aguentaria qualquer coisa.
Qualquer coisa.
Princesa.
Rainha da Romália.
Nada mais serviria.
Uma emoção dolorosa começou a apertar meu peito, e eu a segurei com toda a força
rugindo em mim porque sabia que era vontade de chorar.
E eu não me lembrava da última vez em que tinha chorado na vida.
Quando fui arrancada do útero da minha mãe, talvez.
Por anos eu tinha mentido, roubado, enganado, matado e me humilhado de diversas
formas para sobreviver. Fazia aquilo há mais de três décadas. Havia executado os maiores
golpes e me escondido entre nobres de todo o reino, mas nunca me sentira uma nobre, por mais
que merecesse estar entre aqueles idiotas. Estava no fato de ser uma ladranimi bastarda; quando
eu ficava por muito tempo em algum lugar, sempre acabava descoberta. As pessoas percebiam
que eu só saía para eventos sociais noturnos e que meus acompanhantes apareciam fracos e
anêmicos com frequência. Que os parentescos que eu inventava não existiam e que o dinheiro
que eu dizia ter nunca era visto.
A única coisa que tinha me permitido sobreviver por muito tempo eram meus dons; a
única coisa boa que a linhagem Sarelli tinha me provido até então.
Quando alguém me confrontava sobre a farsa, eu apenas ordenava que esquecessem e
as coisas se resolviam até que eu conseguisse me mudar, organizar uma nova caçada. Era uma
vida conturbada e não necessariamente ruim, mas nunca chegara perto de ser suficiente.
Eu tinha nascido para mais do que aquilo.
E ser princesa? Ser rainha?
Eu não acreditava nas tecelãs do destino, mas se aquilo era mesmo o que aquelas
senhoras caquéticas tinham tecido para o fio da minha vida, eu compraria um palácio de ouro
sólido para cada uma.
Assim que me tornasse monarca, é claro.
E, jurando por todos os malditos deuses, monarca era o que eu me tornaria.
Armei uma careta amedrontada, fazendo minha voz soar trêmula, uma corça inofensiva
e assustada:
— Se eu fizer como estão ordenando... — engoli em seco, batendo os cílios. — Vão
me deixar viver?
— Se fizer como estamos ordenando — Zafonni enfatizou. — Poderá viver, e fará isso
com luxo, segurança e poder pelo resto dos seus anos, menina. Não há nada além de vantagens
para você nesse acordo.
— Prometem? — insisti, apenas para pagar de ingênua.
O velho revirou os olhos.
— Não está em condições de cobrar promessa alguma, mas honraremos nossa palavra.
Ah, podem ter certeza que sim.
— Deixem-nos e iniciem os preparativos — Salvattore ordenou. — Eu gostaria de um
momento a sós com a senhorita para que possamos esclarecer alguns pontos substanciais.
Zafonni, Diavolo e Dicello obedeceram com meneios de cabeça quase que
sincronizados, e apenas ali eu enxerguei a verdadeira extensão da autoridade do vice-regente.
Talvez ele houvesse assumido as coisas por baixo dos panos quando o infeliz do meu pai
morreu, pelo jeito com o qual o líder cacciatore e os outros senadores o obedeciam cegamente.
O que significava que ele também seria meu maior obstáculo.
Era apenas a primeira vez que eu presenciava a interação deles e seus esquemas de
hierarquia, portanto poderia estar compreendendo-a da maneira errada, mas resolvi posar
submissão diante dele de todo modo. Salvattore era uma ameaça considerável, com ou sem
poder de mover objetos com a força da mente.
— Me disseram que você tinha uma aparência acima da média, mas confesso que nunca
esperei isso. — Ele passou os olhos pela minha figura não com desejo ou assombro, mas com
uma curiosidade genuína, como se o fato de eu ser bonita fosse uma surpresa agradável. — Um
pouco magricela, mas não importa. Vai tornar as coisas muito mais fáceis, principalmente com
meus sobrinhos.
Estreitei os olhos de leve, tentando não expressar acusação e sim nervosismo, e
Salvattore se sentou num banco com braços altos estofados em veludo azul próximo à porta.
— Seus sobrinhos, milorde?
— Você acabará conhecendo ambos quando chegarmos a D’Elli. — Acenou com a mão
em descaso e indicou a cama com a cabeça, como se me mandando sentar. — Desejo saber o
seu nível de instrução. Precisa de aulas de etiqueta, idiomas, política, dança, geografia?
Não.
— Eu não saberia dizer, milorde. — Baixei a cabeça e me sentei na cama com um gesto
tímido.
Ele inspirou fundo, como se impaciente.
— Diavolo nos informou das suas pequenas aventuras ao longo dos anos. Sabemos que
você conviveu com pessoas muito acima da sua verdadeira condição social e financeira por
longos períodos — quase revirei os olhos, mas me mantive apenas solicitamente atenta. —
Sabemos o que fazia e sabemos que o fazia bem, ou não teria durado tanto quanto durou. Sabe
diferenciar uma taça de vinho branco de uma taça de água? Fala algum idioma além do
romálio? Consegue me dizer qual é o maior porto de exportação do reino?
Estava muito difícil mesmo de manter meus olhos pregados nele, não grudados à minha
nuca.
Fingi pensar com um pouco de esforço.
— Taças de água são maiores que as de vinho branco, certo? — respondi num tom
inseguro. — Porque vinho branco deve ser servido em menores quantidades... para que não
esquente?
Ele assentiu, não exatamente impressionado, e eu me aprumei como se tivesse ficado
feliz com a demonstração pífia de aprovação, dando seguimento às respostas:
— Falo romálio, bravattano e um pouco de sátrino. E o maior porto da Romália é
Panilos, é claro, dentro do seu território, milorde.
Também compreendo valostro e gollão perfeitamente bem, mas meu finasco está um
pouco enferrujado.
— Melhor que nada, imagino — suspirou, então um toque de hesitação preencheu suas
feições. — Seu registro dizia que sua mãe era Nadani Vicinus, mas essa é a única informação
que temos dela. Nadani é um nome bravattano, não é?
Me retesei no lugar, talvez minha primeira e única reação genuína naquela conversa.
Engoli em seco e assenti de leve.
— Isso será um problema, milorde?
— Se descobrirem, sem dúvidas. — Ele girou um anel de sinete grande no dedo anelar
direito ao pousar o pé em cima do joelho, tão pomposo e seguro de si quanto um nobre
conseguia ser. — É por isso que faremos com que não descubram. Você não tem sotaque
nenhum, o que já colabora bastante, mas ainda precisa ser cuidadosa, fui claro?
Trinquei os dentes por baixo do sorriso fraco.
— Cristalino.
— Conte-me sobre a extensão dos seus poderes.
Não se eu puder evitar.
— Milorde? — Franzi a testa.
— Consegue influenciar mais de uma pessoa por vez? Usa seus dons diariamente?
Alguém sem um anello já conseguiu resistir às suas ordens?
Sim. Sim. Não.
— Só quando me esforço muito, e preciso estar bem alimentada. Faço uso deles quando
a necessidade surge. Acredito que pessoas com a mente forte consigam resistir a comandos que
os incomodam.
Ele grunhiu baixo, esfregando o queixo.
— Apenas uma fração dos poderes do seu pai e meio-irmão, mas ainda assim — me
observou de soslaio —, melhor que nada.
Fingi me encolher, encabulada.
— Providenciaremos um anello para você nos próximos dias, e só está autorizada a
retirá-lo quando eu ordenar — franziu as sobrancelhas, como se estivesse frustrado. — Talvez
precise de um com meu sangue, considerando que o seu é mais fraco. Não temos o luxo de
permitir que algum outro ladranimi te influencie com os próprios dons dentro da corte.
Aquela seria uma grande vantagem para mim. Eu não sabia se meus poderes eram tão
fortes quanto os de Salvattore, mas sabia que um anello do sangue dele já era uma garantia de
bloqueio considerável, talvez um dos maiores do reino.
Quando eu ganhasse influência e confiança o suficiente no palácio, mandaria fazer um
anello do meu próprio sangue para mim e testaria para ver se era mais forte que o de Salvattore,
mas por ora o dele seria mais do que o suficiente.
— Como vão fazer de mim princesa? — Remexi na saia da camisola.
Eu estava genuinamente curiosa, nessa.
— Com uma história longa, subornos generosos e intimidações eficientes.
— E o povo? Acha que vão comprar a farsa?
— A fama dos Sarelli com a população te dará um bom começo entre eles, e você a
manterá assim. É com o resto do Senado que tem de se preocupar.
Uni as sobrancelhas.
— Eles não estão cientes desse esquema?
— A maioria está — deu de ombros —, mas isso não significa que eles o apoiem ou ao
menos concordem com ele. Terá de conquistá-los ao longo do tempo, ou ao menos não os irritar
demais.
Não garanto nem um nem outro.
— Certamente, milorde.
Um pequeno sorriso surgiu no canto dos lábios do vice-regente, e ele me fitou por
alguns segundos.
— Você é esperta, mas não tão esperta quanto pensa.
Eu sinceramente duvido.
— Milorde?
— Me disseram mesmo que é uma ótima atriz. Foi um teatro bem convincente,
Belladonna, mas sabemos que você é orgulhosa, fútil, astuta, e tem muito mais personalidade
do que está se deixando mostrar. Pare com a coisa de se encolher e abaixar a cabeça para tudo
que digo — ele reduziu as pálpebras a fendas. — Não é o que se espera de uma princesa
romália, e é honestamente irritante.
Desviei os olhos, amaldiçoando internamente.
Diavolo e seus malditos relatórios, eu apostava. Nem sempre era possível apagar as
memórias de todos a quem eu enganava, e os cacciatori acabavam interrogando alguns — como
os di Satto, provavelmente. Inevitável, e eu devia ter previsto algo do tipo.
Tudo bem. Teria de improvisar a partir dali, nada do que eu já não tivesse feito antes.
Mentir e atuar eram artes que eu dominava bem, mas talvez aquelas mentiras e atuações de
antes estivessem muito distantes do meu verdadeiro eu para soarem críveis.
Alisei a colcha distraidamente, deixando um pouco do desdém aparecer nos meus olhos.
Apenas o bastante para fazê-lo se convencer de que eu desistira da manipulação agora que fora
pega.
— Não quis enfurecê-los com algum comportamento... inapropriado... e perder essa
oportunidade junto com a minha vida — confessei, devagar. — Sou muito nova e muito bonita
para morrer de forma tão patética.
Aquilo ampliou o sorriso muito de leve nos lábios dele.
— Melhor — concedeu. — Agora que isso está resolvido, tenho coisas a fazer. Uma
costureira virá em breve para ajustar as medidas das suas vestes para sua introdução à corte em
dois dias.
— Dois dias? — Arregalei levemente os olhos.
Eles não perdiam tempo, isso era certo.
Bom, quanto mais cedo botassem uma coroa na minha cabeça, melhor.
— Orientadores também testarão sua instrução e me informarão do seu desempenho
antes de partirmos — continuou Salvattore, como se eu não tivesse dito nada. — E não fique
se contendo nesse teatro. Eu odiaria ter que atrasar meus planos porque você fingiu que não
sabe usar um garfo de sobremesa.
Me deixei revirar os olhos daquela vez, porque sabia que era o que ele estava esperando.
— Sim, milorde. — O toque de exasperação na minha voz fez a sobrancelha do vice-
regente se erguer, entretida, enquanto ele se dirigia à porta.
— Não quero nada além do seu melhor, Belladonna.
— Meu melhor do que nada? — alfinetei, piscando inocente.
Salvattore já tinha saído, mas ainda pensei ter escutado-o bufar.
Antes que eu conseguisse ter paz para assimilar os últimos quinze minutos, contudo —
princesa da Romália — uma mulher parruda e duas criadas entraram pouco depois do vice-
regente ter deixado o cômodo, carregando tecidos diversos e linhas coloridas. Seda valostrana,
veludo romálio, algodão finasco, de todos os tamanhos e texturas... Opções dignas da realeza.
Quase soltei um gritinho infantil de animação com a lembrança de que a realeza era eu.
O que está acontecendo? Princesa.
Rainha.
Eu.
A costureira arregalou os olhos castanhos assim que os colocou em mim, satisfeita.
— Ah, que beleza! Não terei trabalho algum.
Inclinei a cabeça, achando graça.
Uma das criadas pousou uma banqueta à minha frente com uma pequena reverência.
— Suba, querida, suba — apressou a mulher, alfinetes já em mãos. — Precisamos
dessas medidas ajustadas até amanhã de manhã. Pode me chamar de Mênade, e é minha honra
ter sido encarregada de vesti-la daqui para frente, vossa alteza. — Ela me deu uma piscadela.
Aquelas palavras arrepiaram cada palmo da minha pele.
Vossa alteza. Meu atual título.
Meu. Como Belladonna. Não Sofia ou Antonina ou qualquer nome que eu tivesse
inventado para enganar uma família rica. Dessa vez, a Romália me conheceria por quem eu
realmente era, e se curvaria — muito literalmente — diante de mim.
Belladonna Sarelli, o sobrenome de reis de toda uma linhagem.
Obedeci extasiada, solícita em mover braços e pernas quando a costureira pedia para
que pudesse vestir e ajustar a peça ao meu corpo. Um grande espelho com moldura elaborada
em cobre no canto do quarto foi arrastado para perto para que eu e ela pudéssemos analisar o
resultado: as vestes estavam largas antes, graças aos meus quadris finos, mas agora serviam
bem o suficiente.
Elas consistiam num vestido branco recatado com detalhes dourados em formato de
pétalas e gavinhas bordadas ao longo do comprimento das saias. Como se a parte de cima já
não cobrisse o suficiente, uma longa palla rosada ainda foi jogada e transpassada pelos meus
ombros duas vezes para tampar cada polegada de pele visível possível.
Era uma combinação cerimonial inegavelmente bela, mas ainda fiz um biquinho para
minha figura no espelho.
— Podemos fazer uma ou duas alterações?
— O que tem em mente, querida?
Como quem não quer nada, sugeri diminuir o tamanho da palla e dos decotes, deixar
meus braços mais visíveis para que pudéssemos adicionar joias e peças que valorizassem uma
vestimenta tão bonita.
A costureira suspirou, desejosa.
— Gosto do modo como pensa, meu bem, mas o próprio vice-regente escolheu suas
vestes. Acho que ele tem algo em mente para sua apresentação e... mudar o vestido tão
drasticamente... — ela soou temerosa. — Não queremos irritá-lo, não é?
— É claro que não vai irritá-lo! — neguei com toda a certeza do mundo. — Ele sabe
como sou geniosa, não vai se importar. Além do mais, estaremos deixando-o muito melhor!
Ela franziu a testa para mim, hesitante.
— Tem... tem certeza?
Envolvi a mão de Mênade na minha, apertando de leve.
— Confie em mim — assenti, firme.
Mesmo que por dentro eu estivesse rezando aos deuses para que Salvattore não atirasse
um peso de papel em mim em vez de na parede por aquela pequena insubordinação. Não havia
dúvidas de que o vice-regente tinha mesmo algo planejado com aquele tipo de vestes —
provavelmente algo relacionado a me fazer parecer uma das acólitas de Andia, a deusa virgem
da lua e da caça: intocável, donzelesca, pueril.
Pessoas tinham a mania irritante de julgar mulheres pelo modo como nos vestíamos,
como se mais ou menos tecido fossem parâmetros de castidade. Por mais que Salvattore se
esforçasse, nenhuma quantidade de tecido branco pesado conseguiria fazer de mim uma
virgem, então era melhor que ele apenas desistisse da ideia de uma vez.
E, apenas porque não sabia o quanto a lealdade da costureira ao vice-regente estava
enraizada em seu interior, dei um pequeno puxão — apenas uma sugestão de ordem — em sua
consciência enquanto dizia:
— Ele vai adorar, acredite!
Seus olhos ficaram opacos por um pequeno segundo, então a mulher soltou um suspiro
ao ceder:
— Tudo bem, acho que está certa. — Acenou para uma das duas criadas.
E, à medida que Calluna instruía a jovem sobre quais joias polir e quais tecidos
encomendar de acordo com as minhas sugestões, desejei desesperadamente perguntar a ela
sobre o que sabia a respeito daquele “sequestro” e sobre o que verdadeiramente tinham em
mente para mim. E mesmo que eu fosse capaz de mandar a costureira ser discreta ou não contar
a ninguém sobre o meu pedido, eu provavelmente estava sendo vigiada de perto, e era quase
inevitável que Salvattore ficasse sabendo no fim.
Não estava preparada para deixá-lo ciente daquela minha curiosidade apenas para que
ficasse ainda mais alerta ao meu redor nem agora nem nunca, então me mantive quieta com um
pouco de esforço.
Pouco depois de terminar com as medidas e esquematizações de mudanças na
vestimenta cerimonial, a costureira me deu um vestido e palla comuns, ainda que de qualidade,
e puxou uma estante para o lado de súbito — revelando uma passagem secreta por dentro da
parede.
— O vice-regente deu ordens expressas para que não fosse vista antes da apresentação
à corte, nem pela criadagem comum — Calluna esclareceu, solícita.
Franzi a testa, mas assenti e a segui pela passagem escura e úmida cheirando a mofo. A
desconfiança não me deixou, mas a não ser que uma das criadas esquálidas fosse um cacciatore
disfarçado, do que eu profundamente duvidava, elas não teriam a chance de fazer nada comigo;
eu era sobrenaturalmente mais forte, mais rápida, e sempre podia mandá-las fazer o que
quisesse.
Para o meu alívio, contudo, tudo que fizeram foi me guiar para os níveis inferiores por
escadarias empoeiradas e corredores estreitos de pedra consideravelmente menos nobre do que
os mármores do quarto onde eu me encontrava, até que atingimos uma abertura que deu para
uma pequena antecâmara e, em seguida, se expandiu num salão abafado e enevoado.
Banhos termais particulares.
Arcos e cúpulas em pedra clara, pisos em mosaico e estátuas suntuosas me receberam
numa solidão quieta no grande aposento, colunas imponentes rodeando piscinas retangulares
se alternando em níveis altos e baixos pela extensão à minha frente, e velas banhavam o
ambiente com uma luz suave, cândida. Uma expiração baixa e reverente deixou meus lábios
sem querer.
A maioria das casas nas quais eu ficava durante as caçadas tinham água encanada, mas
termas inteiras com cascatas de água quente e límpida apenas para mim... Sorri.
Digno da realeza, de fato.
E eu me adequaria muitíssimo bem a ela.
Continua...
Lançamento 08/04
Na Amazon
Comments