Vislumbre - CENA BÔNUS BELLADONNA
- Laura Reggiani

- 5 de set.
- 28 min de leitura

Os burburinhos estavam ficando cada vez mais altos, e se ela não se apressasse nos próximos minutos, se atrasaria para a própria coroação. Não era lá a melhor das primeiras impressões para uma princesa.
Mesmo para uma princesa falsa.
Batuquei a ponta do pé no mármore com impaciência e lancei um olhar de esguelha para o meu cômica e visivelmente desconfortável primo, resmungando e se remexendo de forma nada principesca naquela toga cerimonial.
— Conseguiu algum vislumbre dela até agora? — Minha voz saiu baixa, mas tive certeza de que Damicca escutou.
— Você sabe que não — ele sibilou de volta. — Seu tio a manteve bem escondida.
— Nosso tio — corrigi, apenas porque sabia que o irritaria.
Poucas pessoas eram tão fáceis de se exasperar quanto Damicca.
— Fale por si mesmo — grunhiu, recompensando meus esforços com um maxilar trincado, e sorri de canto.
— Não está nem um pouco curioso? Os registros mencionaram que a mãe dela era uma beldade.
E Salvattore dissera que o fruto havia convenientemente caído pertíssimo da árvore.
— Bom para ela.
Suspirei, ajustando a capa roxa nos meus ombros num gesto distraído.
A desvantagem era que meu primo era tão entediante quanto facilmente irritável. Eu estava curioso, não me dava ao trabalho de negar.
Como ela é? Eu havia perguntado assim que meu tio chegara a D’Elli com a desculpa em forma de herdeira substituta a tiracolo.
Ele apenas abriu um sorriso enigmático na hora, parecendo se divertir com a minha curiosidade.
Ela é… Adequada. Vai servir.
Eu tinha minhas firmes dúvidas. Belladonna era o nome nos arquivos cacciatori, os mesmos que a descreviam como uma golpista inescrupulosa, uma mulher manipuladora e dissimulada que pulava de homem rico em homem rico para bancar suas futilidades e esconder sua ascendência ladranimi. Sendo metade humana e bonita o suficiente, ela parecia se dar relativamente bem nas empreitadas, considerando a resistência mais elevada à luz do sol.
Para variar, eu tinha sido tão contra a coisa toda quanto Damicca, mas enquanto ele tinha princípios morais e previsíveis, eu apenas achava todo o esquema uma perda de tempo tola. Meu tio não precisava de uma bastarda carismática e agradável aos olhos distraindo o povo e o Senado à medida que terminava de atar sua influência a todo e cada canto da Romália, agora que a família real legítima estava enfim fora do páreo. Se ele quisesse, poderia ter tomado tudo há décadas, mas seus métodos sempre foram pacientes, enlouquecedoramente lentos. Salvattore preferia economizar recursos, apagar rastros e agir debaixo dos panos, não importando quanto tempo levasse.
Nisso, éramos diferentes.
De repente, os burburinhos se calaram, e as imensas portas do salão de cerimônias se abriram com um rangido enquanto os presentes se erguiam dos assentos, tecido farfalhando e joias tilintando na comoção geral. Havia uma boa quantidade de pescoços esticados na direção da jovem de vestido branco e palla vermelha acima da pequena escadaria da entrada.
Ela desceu o primeiro degrau, e a voz do mestre cerimonial ribombou pelas paredes de mármore:
— Saúdem Prima Belladonna Reginna Vicinus Sarelli, filha de Cadena, princesa da Romália.
Resisti à vontade de bufar.
Fileira após fileira, todos os convidados se curvaram exceto por mim e Damicca, a mais diversa gama de reações exposta em seus rostos. Surpresa, admiração, desconfiança, assombro, hesitação. Cada par de olhos acompanhou nossa caríssima nova princesa enquanto ela atravessava o tapete roxo que a levaria até o trono elevado em branco e dourado, repousando embaixo do vitral colorido e do arco esculpido com a máxima da Romália e o emblema da Prima Familia, os Sarelli.
Ombros aprumados, coluna reta, queixo erguido. Havia até um certo brilho de satisfação nos olhos escuros. Uma beldade, com certeza, mas eu tinha a impressão de que meu tio tinha outra ideia em mente para a primeira aparição pública dela.
Aquele vestido era… Revelador.
Um decote generoso, mas não vulgar, e alças finas sustentavam o tecido se agarrando às curvas modestas num arranje justo, com uma palla vermelho-sangue envolvendo seus antebraços numa ilusão de pudor. Joias o suficiente para mostrar abastança, mas não o bastante para ostentar luxo.
Minhas sobrancelhas se franziram de leve. Talvez eu estivesse esperando mais de uma golpista convicta, mas também não teria apostado em menos.
Salvattore havia mencionado que, a princípio, o objetivo era fazê-la se passar por uma garota deslumbrada, singela, grata e talvez um pouco insegura pela oportunidade de assumir um dos reinos mais poderosos do continente, mas nem por isso menos confiante do seu sangue digno. Adequada, ele tinha dito.
De fato. Orgulhosa, também, se eu precisasse dar um palpite.
Talvez até ousada, se eu pudesse supor que aquele visual destoava do planejamento de Salvattore. Ela possuía os dons Sarelli afinal, mesmo com meu tio confessando que eram fracos comparados aos de Caius e Giordano.
Os nobres e presentes se amontoaram ao redor dela num espetáculo movido a pompa e curiosidade depois do fim da cerimônia, e o salão foi reorganizado pela criadagem para que o banquete e festividades se iniciassem. Damicca preferiu se manter distante considerando o enxame de pretores na fila para cumprimentar a nova princesa, a taça de vinho praticamente esquecida na mão tensa, e conversei amenidades com um magistrado minarino até notar meu tio guiando a realeza fajuta para o centro do salão.
Não foi com pouca surpresa que me dei conta de que a servente seguindo-a em vestes amarelas comuns à criadagem interna era Carina Lombardi — o brinquedo favorito de Giordano, falecido meio-irmão da nova herdeira. Ele tinha assumido a garota como amante e ela chegara a comparecer a diversos eventos junto do antigo príncipe, mas nunca supus que teria a coragem de permanecer no Palazzo após a morte dele, muito menos de retornar à ativa junto da atual princesa.
Interessante.
Eu estava jogando o jogo na corte romália há tempo o bastante para saber que aquilo não era uma coincidência conveniente.
Minha atenção foi atraída de volta para o meu tio quando ele estalou os dedos e dezenas de criados entraram carregando os pratos principais do banquete.
— É nossa honra e júbilo anunciar o início das festividades em homenagem à princesa. Que os deuses a abençoem com uma longa vida e um reinado próspero.
Não contive o bufar baixo, daquela vez.
Um criado entregou um prato farto à princesa e ela armou uma careta breve, quase imperceptível para a brasa acesa, antes de sorrir com doçura e jogar o conteúdo no fogo, e aplausos sutis sucederam o gesto. Meu tio entregou uma taça de vinho a ela e um trio de cordas iniciou uma melodia suave no fundo do salão.
Soltei um fôlego expirado para o magistrado e sorri com educação ao entregar minha própria taça a um criado antes que o homem arranjasse mais algum jeito de insinuar que seus negócios em cerâmica eram um ótimo investimento.
— Com a sua licença — meneei a cabeça ao sujeito, já me dirigindo à jovem solteira impressionável mais próxima.
— Sim — esganiçou ela assim que me aproximei com a mão erguida num convite, e achei graça de como os olhos da mulher mais velha ao lado dela reluziram, ambiciosos. Mães casamenteiras eram tão comuns na corte quanto no resto da Romália. — Adoraria dançar com v-você, vossa alteza.
Acenei para os músicos, que iniciaram uma quadrilha mais animada, e outros casais se juntaram a nós na coreografia. Eu gostava de dançar. Achava divertido, até, mas infelizmente a jovem que eu tinha escolhido era uma parceira medíocre, sendo gentil na descrição. Se ela pudesse seguir algum passo com mais fluidez do que uma tábua eu talvez pudesse me entreter iludindo a ela e sua mãe com outra dança consequente, porém, em vez disso, a canção se encerrou e eu apenas me curvei com uma reverência polida.
Ao me virar para escolher outra parceira, atônito, percebi que Damicca tinha se esgueirado até a recém-coroada princesa naquele espaço de tempo e estava iniciando os passos da música seguinte com os braços ao redor dela.
Meu tio provavelmente havia mediado aquilo, já que eu sabia que meu primo preferia cortar os próprios polegares fora e nunca mais segurar um gládio a manchar a honra da sua amada finasca de estimação tocando outras mulheres com segundas intenções.
No entanto, o interesse ainda fez meus pés se moverem na direção do casal, desviando de outras duplas até que eu conseguisse enxergar a careta de desagrado daquele tolo com facilidade.
Me esforcei para não gargalhar da expressão de quem tinha chupado um limão especialmente azedo de Damicca à medida que ele guiava — ou algo similar a isso — a princesa pelo salão. Eu tinha certeza de que cada segundo que ele passava dançando conforme as notas de Salvattore em nome do bem estar da sua doce Fjirna era pura tortura.
Bom para ele, pensei com uma amargura súbita e passageira. Nosso tio tinha formas muito mais dolorosas e criativas de se torturar alguém e Damicca estava com mais sorte que a maioria.
Observei a expressão da herdeira fajuta se encher de cautela para o meu primo ao me aproximar.
— Por acaso fiz algo para irritá-lo?
Damicca teve a coragem de fingir confusão, a voz soando menos hostil do que o semblante quando respondeu:
— Por que acha isso?
Diante de uma deixa tão conveniente, achei apropriado me intrometer:
— Porque você tem o hábito recorrente de estampar seus sentimentos na testa, caro primo.
Ele estancou no meio da dança, quase atirando nossa nova e bela princesa por cima da própria perna num tombo que teria feito ambos passarem vexame na frente de toda a corte.
Seria uma cena memorável, com toda a certeza, e a carranca se acentuando no rosto de Damicca me fez rir baixo.
Foi quando a bastarda Sarelli suspirou de leve, quase um sussurro de som — e se virou na minha direção.
A aparência dela era ainda mais agradável de perto, não havia como negar.
As características ladranimi típicas em seus traços eram destacadas pela outra metade da sua linhagem, eu suspeitava. O falecido pai dela, rei Caius, estava longe de ser o maior exemplo de fidelidade no reino, mas se havia uma coisa que costumava fazê-lo abandonar a cama da sua rainha sem nem piscar eram rostos como os de Belladonna, que ela muito provavelmente herdara da mãe.
Cílios longos emoldurando olhos poucos tons mais claros que os meus analisaram minha figura de modo tão sutil quanto eu fiz com ela. Se algo na minha aparência a intimidou ou impressionou, não havia nada em seu rosto que delatasse.
— Vossa alteza. — Inclinei a cabeça numa reverência.
— Lucca — cumprimentou Damicca, ainda carrancudo.
— Damicca — repliquei com um tom mais jovial do que o comum porque eu sabia que o tiraria do sério. — Posso ter minha dança com nossa princesa ou você pretende monopolizá-la por toda a noite?
Ele a entregou nos meus braços como se estivesse me dando um inseto morto, e eu pude ver a clara irritação nas íris dela diante da indiferença do meu primo. Não estava acostumada à rejeição, provavelmente.
Já tínhamos uma coisa em comum, pelo menos.
Uni nossos troncos para nos encaixarmos de volta na coreografia e o corpo dela se moldou facilmente ao meu posicionamento, entrando no ritmo da melodia com uma fluidez natural.
— Você causou uma primeira impressão e tanto.
Ela sorriu de leve, um tanto conspiratória, seguindo meus passos sem a menor dificuldade.
— É mesmo? — Arqueou as sobrancelhas delicadas, nossas palmas e dorsos da mão se unindo e afastando para seguir as deixas da música. — Eu teria suposto o contrário vindo de vocês, sendo honesta. Nem vossa alteza nem o príncipe Damicca foram me cumprimentar junto do restante do Senado. — Os lábios bem desenhados se curvaram num bico charmoso.
Sorri ao nos alternarmos com os outros casais por alguns segundos antes de conseguir devolver:
— Então é meu prazer desapontar, pois asseguro que poucos olhos nesse salão deixaram-na esta noite. — Devolvi o flerte sem titubear, e vi seus olhos reluzirem com satisfação em resposta. — Queria ter tido a chance de convidá-la para a primeira dança, mas infelizmente Damicca chegou antes de mim.
— Não sei se podemos chamar aquilo de dança.
Contive a risada com um pouco de esforço, deixando apenas um sorriso esticar meus lábios. Poucas pessoas eram capazes de arrancar reações genuínas do tipo em mim, e o fato de que ela quase conseguiu me dizia que seu carisma tinha sido tão bem lapidado quanto o meu ao longo dos anos. Talvez até mais, considerando que o título de príncipe me concedera a bajulação pronta desde novo.
— Devemos mostrar a Damicca como verdadeiramente se dança, então? — propus, mais como um teste do que qualquer outra coisa, para ver se ela teria a coragem de levar aquela atitude atrevida e coquete a sério.
Eu honestamente esperava que sim. Estava mais curioso a respeito dela do que devia me permitir admitir. Atormentar Damicca era um dos meus passatempos ocasionais prediletos, afinal.
Belladonna não me decepcionou ao sorrir e piscar sugestivamente:
— Estaríamos fazendo um favor a ele, não acha?
A resposta à altura me fez parar, e ergui a mão. A música e os casais enfileirados de cotovelos entrelaçados pararam junto, e quando acenei para o trio de cordas, todas as duplas se afastaram da pista de dança e os músicos iniciaram uma das minhas valsas favoritas, um tamborim se unindo aos três instrumentos de antes.
Ela inclinou a cabeça, analisando a cena com cuidado, mas veio sem reclamar quando a puxei pela cintura e colei nossas frentes com o desenrolar das notas pesadas, ritmadas em calor. A canção provavelmente exigiria mais decoro quando performada por mais casais, mas senti uma vontade repentina de ultrapassar os limites do aceitável já que tínhamos quase toda a mira no salão centrada em nós dois.
Quando girei Belladonna para longe e voltei a tomá-la nos braços depois de um movimento improvisado que ela seguiu à perfeição, eu soube que nossa caríssima princesa falsa era mais do que capaz o suficiente como dançarina. Nos rodopiando em arcos mais amplos pelo espaço disponível, envolvi sua cintura com as mãos em uma determinada nota e ela apoiou as dela nos meus ombros com uma predição impecável, se sustentando ali quando a ergui num salto breve, os olhos faiscando com o deleite de um passo complexo bem executado. Eu adorava um pouco de atenção, e o fato de que ela também não parecia se intimidar com o espetáculo adicionava outra preferência em comum a nós dois.
Espelhando meus movimentos, acompanhando minhas deixas e sorrindo com uma graciosidade e elegância natas durante toda a coisa, não pude deixar de me impressionar um pouco, mesmo a contragosto. Fazia sentido que houvesse sobrevivido por tanto tempo como golpista e ladranimi bastarda, levando em consideração aquela fachada bem feita. Se eu não soubesse do seu passado, talvez até pudesse ter sido enganado a achar que a mulher tinha nascido num berço nobre.
As notas arrastadas se aproximaram do fim, e separei os pés ao girá-la uma, duas, três vezes antes de pararmos junto do último acorde, rostos e corpos separados por meros milímetros.
Por breves instantes, um torpor pareceu nos imobilizar antes que os aplausos irrompessem pelo salão, estrondosos. O sorriso nos lábios de Belladonna — ainda escandalosamente próximos dos meus — se expandiu minimamente.
— Espero que o príncipe Damicca tenha aprendido pelo menos uma ou duas coisas — provocou, irreverente até o fim.
Bem ali, na arrogância discreta daquele semblante e na curva pecaminosa daquela boca, eu percebi sem dúvida alguma que Belladonna seria uma ameaça.
Talvez meu tio não tivesse visto a cobra — ou melhor, flor — venenosa que enfiara no coração da corte romália pelo que ela de fato era, mas aquela ali era adequada até demais. Aquilo em seus olhos escuros não era ambição ou deslumbre.
Era ganância. Uma fome voraz o suficiente para arrancar pedaços inteiros em vez de morder aos poucos.
Ela não valia o problema que causaria, mas Salvattore me ignoraria de pronto se eu fosse até ele com essa reclamação. Húbris sempre foi o defeito fatal do meu tio, mas eu me encarregaria de livrá-lo daquela pequena adversidade antes que ela criasse raízes.
As metáforas com o nome dela são inesperadamente numerosas, pensei com uma risada interna.
Convenientemente, encontrei a maneira mais fácil de enxotá-la ao notar o subir e descer sutil, mas ainda inesperado dos seus ombros.
Está com falta de ar, escondi a presunção ao notar. Ela não se alimentou antes de vir.
Talvez não fosse tão esperta quanto os relatórios diziam.
— Sede?
A bastarda Sarelli piscou, confusa por alguns segundos, então um leve constrangimento a fez desviar os olhos, como se percebesse que deixar de beber sangue previamente tivesse sido ingênuo da sua parte.
Ofereci uma solução inofensiva:
— Eu e alguns dos outros vamos nos retirar para o carminium em breve. Seria uma honra se vossa alteza se juntasse a nós.
Algo semelhante a antecipação brilhou nas íris dela.
— A honra será toda minha.
Quando a próxima música começou e nos separamos com reverências mútuas, vários nobres nos rodearam em polvorosa, sedentos por um pouco de atenção, e Belladonna já tinha se afastado quando dei por mim.
Fingi escutar algumas discussões e fofocas maldosas mal-disfarçadas por alguns extenuantes minutos antes de pedir licença com a desculpa de que estávamos bloqueando a pista de dança com o falatório. Quando encontrei a princesa fajuta outra vez, ela já estava se engraçando para cima de um Legado, herdeiro de algumas das vinícolas mais prósperas em todo o reino.
Ela não perdia tempo, eu tinha de admitir, mesmo sabendo que aquele ali preferia homens.
Peguei a conversa pela metade ao me aproximar:
— … Nos conhecemos através de Giordano. Gostávamos de cavalgar juntos. — Um saudosismo entristecido baixou os olhos de Vicenzo Rossi com a sentença.
Num exemplo eficiente de traquejo social, Belladonna voltou a conversa para tópicos mais leves antes que o clima pesasse com o luto na expressão dele e da criada ao lado dela.
— Temo ser péssima cavalgando. — Ela armou uma careta ao confessar. — Mas não que eu me sinta exatamente mal por isso. Nenhum equino suado e bufante substitui um assento espaçoso e confortável de carruagem.
Vicenzo sorriu, e resisti à vontade de revirar os olhos.
Era o esperado de um nobre sem experiência militar — mesmo de uma nobre falsificada. Nenhum deles escolheria uma montaria ao invés da comodidade de uma carruagem, então não devia ter me irritado. Seria o esperado até de mim, se eu nunca tivesse conhecido Cerício, mas o que deveria ter sido um comentário bem-humorado se tornou ruído desagradável aos meus tímpanos, como uma nota desafinada.
— Não tenho argumentos contra isso, vossa alteza — replicou Vicenzo, e me inseri no diálogo com um comentário muito mais ameno do que o que eu verdadeiramente gostaria de dizer:
— Poucos teriam.
Estendi a mão na direção de Belladonna, e notei seus olhos esquadrinhando os anéis nos meus dedos por alguns segundos antes que ela erguesse a mira para mim quando anunciei:
— Perdão interrompê-los, mas a princesa me prometeu companhia no carminium. — Girei para encarar o Legado Rossi, oferecendo por mera cortesia: — Gostaria de se juntar a nós, Vicenzo?
— Me alimentei mais cedo. — Os lábios dele se esticaram em um sorriso contido, amarelado, e Belladonna pousou a palma na minha. — Mas o convite é muitíssimo apreciado.
Resisti à vontade de bufar com o nervosismo em sua expressão, mas apenas girei nos calcanhares e me voltei para a saída com a bastarda a tiracolo. Ela já tinha começado a me acompanhar quando parou de repente, a cabeça voltada para trás, e segui o alvo da sua atenção até me deparar com o rosto subitamente pálido da sua criada, congelada no lugar.
Ah.
Eu tinha ouvido sobre o escândalo meses antes, como todo o Palazzo. Poucos não ficaram sabendo que a amante do então príncipe herdeiro tinha sido atacada por um nobre venusiano que se alimentara dela à força no carminium. Toda a coisa repercutiu com muito mais força do que o normal porque Giordano reagiu com uma violência irascível: o sujeito tinha sido exilado e execrado de todos os títulos.
Claro, se alguém tivesse ousado tocar e principalmente beber à força de alguém que me pertencia, a minha reação teria sido ostensivamente pior, e nada além de uma cova rasa e não identificada para o desgraçado seria o bastante. Mas Giordano não era como eu ou até mesmo Damicca — porque quando se tratava de Fjirna meu primo conseguia ser tão perverso e vingativo quanto —, mas essa tinha sido a exata razão do burburinho exacerbado. A personalidade do falecido príncipe era calma, paciente, um tolo alegre da melhor raça. O fato dele ter retaliado com tanta brutalidade tinha mostrado à corte exatamente o quanto a criada importava para ele, e poucos ousaram sequer olhar errado para ela depois do evento.
Até ele bater as infelizes botas, no caso.
Agora ela estava desamparada e precisava da posição junto da nova princesa se quisesse um mínimo resquício do privilégio que costumava ter ali dentro, então não me surpreendi tanto quando, mesmo apesar do incômodo perceptível em seus ombros tensos, Carina deu um passo a frente para nos seguir com o queixo erguido, ainda que um pouco trêmulo.
Então o Legado Rossi quase saltou à frente dela, como um escudo humano.
— Mil perdões, vossa alteza, milhões deles. — Ele pareceu se preparar para algum tipo de represália negativa da parte de Belladonna. — Faz semanas que não vejo ou ouço de Carina. Consideraria me deixar roubá-la apenas por alguns momentos? Tenho certeza de que o restante dos criados não lhe deixará faltar nada.
Ao contrário do que ele esperava, a face da bastarda mostrava pouco além de uma curiosidade calculada. Ela tinha notado o comportamento suspeito de ambos, mas se fosse minimamente inteligente, é claro que não reagiria de forma rude, ou perderia dois aliados imprescindíveis na corte; um Legado e uma criada com informações e histórico úteis a ela.
— Mas é claro. — Sorriu Belladonna, a imagem da compreensão, e assentiu. — Divirtam-se.
Eu a guiei rapidamente para fora do salão e em direção ao carminium em seguida, cabeças se curvando em reverências pelo nosso rastro.
A nobreza já presente no salão ricamente decorado em tons quentes e tecidos macios nos rodeou feito outro enxame quando pisamos para dentro, a maioria da bajulação direcionada a Belladonna. Elogiando sua vestimenta, sua aparência, buscando sua aprovação e amizade sem poupar adulações. Ela parecia acostumada ao cenário, entretanto, porque não se deixava levar e mantinha a compostura.
Os olhos dela correram pelo recinto com calma, cautela, analisando sem pressa desde as colunas de mármore azul-acinzentado aos corpos se enlaçando na escuridão dos cantos mais afastados, e foi apenas quando sua testa se franziu em confusão diante da indagação de uma nobre de cachos loiro-escuros que intervi no diálogo para explicar:
— Collarossi — pronunciei o romálio antigo devagar. — Todos aqueles dos quais puder beber no Palazzo Veritas terão uma faixa carmim ao redor do pescoço.
Tornava as coisas mais fáceis.
— Também os chamamos de sanguinutta de vez em quando, então se ouvir o termo por aí, não se assuste. — A jovem nobre soltou uma risadinha.
— Vários deles acham ofensivo, entretanto. — Um questor minarino ao lado dela revirou os olhos.
Um lampejo efêmero de julgamento estreitou os olhos da princesa, e pude notar seus lábios se comprimindo com um toque ainda mais breve de raiva quando ela deslizou a mira na direção da collarossa mais próxima, então da outra e mais uma.
Tão rápido quanto surgiu, no entanto, aquela fração de temperamento se extinguiu em um floreio doce, e Belladonna sorriu.
— Taça, por gentileza.
Curioso.
Poderia ela ter alguma aversão às collarossi? Desprezo ou repulsa? Ela não seria a primeira. Muitos dos nobres escolhiam suas presas a dedo por preferências específicas ou até porque preferiam formar um vínculo com aqueles de quem se alimentavam. Talvez Belladonna fosse um deles.
Um pouco mais tarde do que eu gostaria, contudo, me dei conta de que o problema estava longe de ser as collarossi em si. Nossa cara herdeira fajuta não deu a mínima para algumas das outras serviçais de sangue, mas toda vez que uma bravattana ou gollã desmaiava com a falta de sangue ou o cansaço nas proximidades o maxilar dela trincava de forma discreta. Eu só tinha notado porque estava prestando atenção.
Eram as estrangeiras, percebi, não com pouca surpresa. Ela não sentia asco ou raiva delas.
Sentia solidariedade.
Não chegava a ser compaixão porque Belladonna não ousava fazer nada a respeito, mas ainda assim…
É claro. A mãe era bravattana, de acordo com seus arquivos. Ela devia ter sentido muita da famosa intolerância romália na pele quando nova, provavelmente. Civis com sangue forasteiro eram considerados dignos de pouco além da miséria no reino, trabalhando praticamente como escravos nas minas e lavouras ou prostitutas e serventes nas ruas. Mesmo os que ingressavam as legiões permaneciam renegados a posições inferiores e irrelevantes na infantaria.
Era injusto, eu não negava, mas era o modo romálio.
Uma princesa romália com sangue misto, achei graça. Era a primeira vez que acontecia, e uma parte minha estava curiosa para ver como ela se comportaria diante da animosidade descarada do próprio povo a uma parte da ascendência dela.
Porém, não importando o quão adequada meu tio achava que ela era, Belladonna também era previsível. Antes mesmo que seus dedos envolvessem por completo o cálice de sangue que uma criada lhe trouxe, um bom terço do conteúdo já estava descendo pela garganta alva. Ela era uma bastarda, afinal. Qualquer oportunidade de beber sangue fácil ainda devia ser um privilégio a se aproveitar, e esse hábito não se extinguiria do dia para a noite.
Sorri, entretido, quando Belladonna arregalou os olhos assim que fiz um lenço levitar na sua direção depois que um pequeno fio avermelhado escorreu pelo canto dos lábios dela.
— Perdoe-me. Usar as mãos é superestimado.
Eu não conseguia me ver nascendo com outro poder além da telecinese naquele ponto da minha vida. Era um dos poucos dons que permitia uma liberdade ampla de utilização mesmo com outros ladranimi possuindo anelli — o objeto nos impediria de usar o poder no portador, mas não protegia-o de ser atingido por projéteis, não fazia nada se quiséssemos manipular uma lâmina à distância para cortar a cabeça do infeliz.
Fazendo bom proveito da minha habilidade, pousei taça atrás de taça nas mãos ávidas de Belladonna até que ela estivesse risonha, um pouco corada e arrastando consoantes ao falar, um golpe que acabou ricocheteando quando convidados começaram a olhar atravessado na direção dela.
Aquilo era sotaque bravattano. Deuses, o dialeto aparecia quando ela ficava bêbada.
Se eu fosse obrigado a admitir, até que era um pouco charmoso.
Meu tio não ficaria feliz. Ficaria furioso, sendo honesto, mas bom, agora isso era problema dela.
Quase me preocupei ao perdê-la de vista por alguns minutos, mas logo a encontrei nas áreas externas, esticada de forma elegante e ainda preguiçosa sobre um dos sofás próximos às fontes de pedra clara e jardim molhado. A luz do luar banhava a pele macia e os olhos dela estavam fixos em ninguém mais ninguém menos que Morana.
Minha prima mais nova e enxerida parecia tentar insistir em algo e Belladonna por sua vez não parecia feliz com isso, mas simplesmente me enfiei no meio das duas e sorri com um flerte descarado no olhar para a falsa herdeira.
— Cansada, belíssima?
— Lucca — sibilou Morana atrás de mim, irritada. — Ela já bebeu sangue o suficiente.
Não me dei ao trabalho de reconhecer sua presença, porque se havia um parente que eu apreciava atormentar mais que Damicca, era ela.
E Belladonna parecia ter esquecido da sua presença por completo.
— Depende do que tem em mente. — Ela aceitou minha mão estendida para ajudá-la a se erguer com um sorriso lânguido e sugestivo.
Previsível, de fato.
Ela estava um pouco cambaleante, mas não teve dificuldade alguma em se apoiar em mim para equilibrar o gingado dos quadris, as unhas longas se fincando suavemente na minha pele e descendo pela parte interna do meu antebraço.
Eu a guiei até um dos quartos mais afastados do restante da comoção — a privacidade seria essencial para a próxima parte, afinal —, trancando a porta atrás de nós com telecinese antes de pressioná-la contra a parede, um sorriso inteiramente masculino pendurado no canto da boca.
Belladonna puxou um fôlego súbito, as pupilas engolindo as íris com a luxúria misturada à quantidade de sangue que tinha consumido, e no segundo seguinte ela estava me puxando pela borda do manto para esmagar os lábios nos meus.
Uma das minhas mãos envolveu sua cintura, possessiva, e a outra enlaçou sua nuca para submetê-la ao ângulo que eu preferia, mas não que ela tivesse aceitado calada. Belladonna enfiou os dedos pelo meu cabelo, pressionando o corpo contra o meu antes de aprofundar o beijo sem hesitação alguma.
Soltei um gemido baixo, metade excitação e metade frustração.
— Deuses, você vai tornar tudo isso mais difícil, não vai?
Ela abriu um sorriso preguiçoso e me observou por entre as pálpebras pesadas de desejo ao umedecer os lábios avermelhados.
— É o que eu faço de melhor.
O pior? Eu não duvidava em nada. Era de fato uma pena que eu não pudesse aproveitá-la mais um pouco. Eu conhecia muito bem meus gostos e preferências e ela se encaixava neles sem obstáculos. Se encaixava até demais.
Se eu me permitisse ceder e não a assustasse para longe do Palazzo logo, em breve eu estaria desejando a bastarda em vez de ameaçando a maldita.
Apenas retribuí o sorriso ao mordiscar a sua boca.
— Encrenqueira — provoquei, e Belladonna riu baixo.
— Isso faz dois de nós.
— Pode ter certeza que sim. — Voltei a beijá-la, me lembrando de que ela até podia ser boa naquilo, mas ainda não era o suficiente.
Ela podia ser esperta, bonita e habilidosa, mas a corte romália exigia mais do que aquilo para se sobreviver às suas intrigas e armações.
— Acredite ou não, estou te fazendo um favor — sussurrei contra o seu pescoço, a voz quase inaudível, principalmente para alguém tão bêbada e absorta em devassidão.
Mole e suscetível nos meus braços, foi quase fácil demais usar meu poder para retirar a adaga que eu quase sempre levava embainhada sob a roupa e cravá-la em seu abdômen.
Belladonna arfou.
Arregalando os olhos, as unhas se fincando nos meus braços com força e o corpo tenso como um aríete.
O sangue começou a se espalhar pela ferida, manchando aquele lindo vestido branco e escorrendo pela lâmina, e não havia um traço sequer de culpa no meu rosto.
— Não é pessoal, belíssima. — Uma parte minha fez questão de informar.
Não era, mesmo. Ela só ia dar trabalho e eu não estava com paciência para limpar as bagunças que meu tio largava na corte real. Ele sempre debandava para Minari e todo o serviço sujo sobrava para mim. Considerando o quão perto estávamos de tomar o trono, eu não achava que ela valia o esforço.
— Filho da puta. — O xingamento saiu em um chiar fraco, e a tentativa débil de se livrar do meu agarre só conseguiu me dar pena.
Franzi a testa, um bocado condescendente.
— Não se esforce mais do que consegue à toa, princesa.
— Por… por quê?
Encarando a adaga enfiada na própria barriga com as feições contorcidas em dor e náusea, ela soava de fato incrédula, provavelmente se perguntando por quê diabos meu tio teria todo aquele trabalho de trazê-la à capital e apresentá-la à corte apenas para que eu desfizesse tudo depois.
— Você não entende, belíssima. Nunca sobreviveria aqui. — Fui mais honesto do que o normal. — Nunca.
Havia fúria em seus olhos — agora lúcidos e ensandecidos com a adrenalina diluindo os efeitos do torpor.
— Então garantiu q-que eu… Soubesse disso pessoalmente?
Inspirei sem pressa pelo nariz, pensativo.
— Pode-se dizer que sim.
— Desgraçado.
— Mas é uma pena — vocalizei meus pensamentos anteriores numa confissão inesperada até para mim. — Tanto poder desperdiçado. Tanta beleza e potencial não aproveitado.
Aquela pequena revelação morreria com ela, se dependesse de mim. Não que eu pretendesse matá-la naquele momento, porque aí então a fúria do meu tio se viraria contra mim, mas se a princesa fajuta fugisse por conta própria…
Eu tinha certeza de que ela conseguiria se virar, ainda mais ciente de que tentariam rastreá-la outra vez. Belladonna tinha sobrevivido por décadas assim, mais algumas não fariam mal.
A falta de tempo ainda era lamentável, no entanto.
Quando ela perdeu as forças e deixou que eu a amparasse antes que caísse, a primeira coisa que me veio à mente foi como eu queria tê-la encontrado antes de Salvattore. Talvez se ela tivesse ousado entrar nos círculos da nobreza, eu a teria reconhecido de longe e sem esforço pela joia que era. Eu a teria cortejado e mimado e a tomado para mim, escondido-a com muito mais cautela e zelo do que Damicca, para que meu tio nunca pudesse usá-la contra mim numa possível desavença ou rusga de poderes — porque isso era exatamente o tipo de coisa que ele faria.
Eu teria feito dela uma vantagem incomparável, usando do seus poderes Sarelli ao meu bel prazer para dobrar aliados e me livrar de inimigos. Teria idolatrado cada centímetro daquele corpo feito meu altar pessoal até tê-la se contorcendo embaixo de mim, implorando e arfando, e não pude evitar a perplexidade diante da sensação de perda — como se eu pudesse ter salvo a rainha e feito um xeque-mate se ao menos tivesse previsto a jogada adversária dois ou três movimentos antes.
Eu a queria. Deuses, queria desesperadamente.
Belladonna resfolegava, a testa pousada na minha em função da fraqueza, os lábios pálidos. As pupilas dilatadas me encarando por entre os cílios escuros, vazias da resistência e da raiva queimando nelas há pouco. Subjugadas. Suscetíveis.
Franzi a testa, engolindo em seco.
Ela parecia prestes a perder a consciência.
Eu tinha pouco tempo, ou quase nenhum.
Meus olhos se fixaram na boca entreaberta a milímetros da minha.
Era um tremendo, inaceitável desperdício.
Eu queria só mais um pouco dela. Uma última vez. Um último gosto de tudo que eu poderia ter tido numa possibilidade agora distante. Não mudaria nada, afinal.
Um último beijo.
Avancei sem pensar.
Sem provocações ou preliminares, nossos lábios e dentes se chocaram e foi como jogar óleo em um braseiro. As chamas se ergueram, consumindo o que havia para tomar, e o corpo de Belladonna se moldou à minha vontade como argila. Minhas mãos desceram para apertar sua bunda e mantê-la presa a mim com meu poder mantendo a adaga imóvel para que não a machucasse mais. Cogitei até tirar aquela porcaria dali e deixá-la beber sangue para se curar, porque eu sabia que um mero gosto não seria o suficiente.
Ela devia ser minha. Toda e cada parte dela. Minha para tomar.
Meu tio que queimasse na danação.
Deuses, eu devia estar perdendo a sanidade.
— Por que… Por que precisa tornar tudo tão… Difícil? Belladonna — gemi, enterrando o rosto na curva do seu pescoço, onde o cheiro doce e inebriante dela se concentrava, intercalando chupões e mordidas na pele macia. — Deuses, Belladonna…
Ela perdeu um pouco da sustentação graças ao meu peso e eu me adiantei para sustentá-la. Quando sua lombar encontrou a cômoda, a posição me permitiu erguê-la sentada ali, e Belladonna mordeu meu lábio inferior, ofegante. Ainda não era o suficiente. Eu tinha a impressão de que nunca seria.
O desejo rugiu mais alto no meu sangue e deixei um som rouco escapar, separando suas pernas e me enfiando entre elas, esfregando a semi-ereção no meio das suas coxas, o raciocínio enevoado. O frenesi subiu pela minha espinha, arrepiando minha pele, ateando fogo a…
Foi como mergulhar numa banheira fria depois de um porre de vinho.
Arregalei os olhos com a clareza abrupta, congelando no lugar.
Que porra eu estou fazendo?
Não tive nem meio segundo para chegar a uma conclusão — alguma coisa me atingiu com força no lado esquerdo da cabeça, se quebrando e me mandando para o chão, arrastando Belladonna junto no processo.
Soltei um gemido e minha visão ficou preta por alguns segundos, a dor fazendo metade do meu crânio latejar com força. Cacos de cerâmica pontilhavam o tapete à minha direita, e percebi com um pouco de afinco que aquilo provavelmente era o que tinha me atingido.
A bastarda tinha me acertado com um vaso.
Um ruído molhado alcançou meus ouvidos acima do retinido do golpe, então um grunhido feminino entredentes que eu supus pertencer a Belladonna. Merda. Meu poder tentou responder ao meu chamado sem muito sucesso — controlar coisas com a mente exigia que tal mente estivesse no mínimo consciente, e a minha ainda estava tentando chegar lá depois da pancada.
Me empenhei para me erguer sobre os cotovelos, estremecendo com a tontura e o esforço de fazer meus músculos responderem, mas fui pressionado de volta no carpete logo em seguida, e um puxão brusco no meu couro cabeludo fez minha cabeça tombar para trás, expondo meu pescoço ao fio de uma lâmina.
Se não estivesse tão grogue, eu teria rido.
Mulherzinha traiçoeira.
Ela teria sido perfeita.
Mas agora ela provavelmente tentaria me matar se eu não a apagasse antes. Minha telecinese se anunciou com mais sucesso daquela vez, mesmo que desorientada, quando os móveis e objetos de decoração chacoalharam pela sala com a influência do meu poder ao nosso redor.
— Atire uma coisa sequer contra mim com a sua merda de força da mente e eu te degolo — Belladonna rosnou contra o meu ouvido, nada da elegância aveludada que ouvi em seu tom de voz a noite toda, e uma ardência leve se seguiu por culpa da pressão da adaga na minha pele. Fez cócegas quando o sangue escorreu do corte fino e desceu pelo meu pomo de Adão.
Não dei atenção. Ela teria mais problemas que eu assassinando um príncipe do que eu me livrando de uma desculpa em forma de princesa.
Mas talvez eu devesse ter aprendido a lição antes de subestimá-la outra vez, porque em vez de cortar minha garganta, o que Belladonna fez foi cravar os dentes nela.
Meus lábios se abriram com o choque, a revolta, o mais absoluto ultraje.
Eu nunca tinha permitido que ninguém me…
Deuses.
Era… Porra.
Minhas tentativas de resistir ao êxtase correndo pelas minhas veias enquanto meu sangue era consumido por aquela megera descarada duraram vergonhosamente pouco. Tudo que consegui fazer depois foi arquejar, fechando os olhos e amolecendo dentro do agarre dela, as palavras me escapando e a lucidez escorregando para longe.
Aquilo era baixo, indigno. Beber de outro ladranimi à força era uma forma velada de abuso e dominação na corte romália. Eu devia estar me retorcendo em cólera, me aproveitando da distração dela para atirá-la contra a parede e quebrar seu maxilar pela ofensa.
Em vez disso eu estava perdendo a vontade de resistir junto com a capacidade de me manter consciente.
Era quase melhor que beber de uma presa durante o clímax, uma versão diluída do prazer inebriante que entorpecia seus nervos e mente. Isso era irônico vindo de mim, que sempre me recusei a permitir que parceiros se alimentassem de mim durante o sexo. Uma fração minha achava degradante, e quem quer que fosse, nunca me pareciam dignos o suficiente.
Se eu ao menos soubesse que seria daquele modo.
E talvez eu nunca tivesse a oportunidade de repetir a experiência para compensar minhas décadas de equívoco, porque no segundo seguinte as bordas da minha visão escureceram e eu perdi os sentidos.
(...)
Quando abri os olhos, minha cabeça ainda estava doendo feito a danação.
Soltei um grunhido ao tentar me levantar e ter a sensação do que eu imaginaria ser um prego atravessando minha têmpora esquerda, a boca amargando e o restante dos meus músculos doloridos.
Belladonna.
Foi a primeira palavra, nome e pessoa que me atingiu, minha mão disparando para a lateral da garganta.
De onde ela tinha se alimentado de mim.
À força.
Piscando para clarear a vista, bufei de forma que o rancor quase pingou dos meus lábios numa materialização física. Era de fato muito pior do que eu pensava, percebi, ao repassar os eventos da noite na minha memória borrada. Belladonna podia ter caído na minha armadilha feito um patinho, mas em vez de se assustar e tentar fugir quando eu fingisse deixá-la ir, a desgraçada ardilosa se recuperou quase que imediatamente e devolveu o golpe de um jeito que meu orgulho não esqueceria tão cedo.
Se eu antes achava que ela não tinha o necessário para sobreviver à corte romália, agora eu podia admitir com um bom bocado de desgosto que talvez tivesse me precipitado.
A bastardinha não era tão previsível assim, afinal.
Por algum motivo deturpado, aquele fator só fazia minha curiosidade se eriçar em antecipação. Apenas pela possibilidade de Belladonna vir a se tornar uma jogadora na partida em vez de se resignar ao posto de peão do meu tio. Um desafio à altura.
Digna, aquela fração minha cogitou.
Talvez eu devesse deixá-la se esbaldar com a sua pequena farsa de princesa. Salvattore merecia tremer um pouco nas bases para lidar com um problema que ele mesmo tinha insistido em criar quando descobrisse do que a mulher era capaz.
Cobri os olhos ao me sentar com um pouco de dificuldade, as articulações reclamando pelas horas na posição humilhante. Eu não tinha ideia de quanto tempo havia se passado, mas ainda conseguia ouvir vozes e risadas esganiçadas lá fora no carminium, então talvez não muito.
Ao dobrar a perna para desenroscar o tecido do manto dela, a bainha fina da adaga cutucou minha coxa.
A adaga. A apreensão afundou meu estômago num tranco brusco.
Girei no lugar, revirando o cômodo com os olhos e depois com meus poderes e mãos.
Nada.
Não.
Aquela adaga tinha pertencido a Cerício. Fora um presente meu, um agrado bobo dado em um dia de festividades na capital de Minari porque ele disse que queria mesmo comigo oferecendo lâminas melhores e mais bonitas. Era um dos poucos pertences que haviam sido enviados com sua mortalha de volta da Crácia à família, e eu conseguira surrupiá-la por um triz antes que tudo fosse entregue à residência humilde na qual seus pais moravam em Castello.
E Belladonna a tinha levado.
Era uma arma simples, marcada pelo uso, não tinha nada de especial e ainda assim… Aquela farsante metida a realeza tinha me nocauteado e roubado a adaga que eu usara para apunhalá-la.
Uma risada amarga deixou meus lábios, e esfreguei o rosto num gesto movido a pura frustração colérica.
Mas como ela tinha…?
Eu me lembrava de perder a razão por alguns minutos. De me perder nela, em um desejo irracional se acentuando súbita e ardentemente no meu âmago, de possuí-la e fazê-la minha. Não era um traço meu. Ser prático e manter minhas prioridades em ordem nunca foi um problema antes.
Mas, de algum modo, Belladonna tinha…
Usado seus poderes.
A possibilidade bastante real me ocorreu como uma bofetada.
Ela… Não pode ser. Ela era forte o suficiente para usar manipulação mental em mim mesmo enquanto eu portava o anello?
Era impossível. Minha linhagem era uma das mais puras na Romália, ela não…
Porra. Suspirei, exasperado.
Estava criando desculpas. Era irrefutável. E impressionante, mesmo que bastante desagradável de se concluir.
Isso a tornava uma adversária com uma influência inteiramente diferente no tabuleiro. Ela tinha mentido para Salvattore e meu tio, orgulhoso como era, nem pensara em desconfiar de uma golpista e mentirosa profissional num aspecto tão tolo como aquele. Eu tinha sido tolo o suficiente para aceitar a informação como verdadeira e me basear nela para emboscá-la. Ela era uma bastarda, afinal, com sangue ladranimi misto, e sempre se supunha que estes não sabiam como usar seus poderes apropriadamente porque precisavam escondê-los ao longo da vida.
E Belladonna…
— Hã — bufei alto, incrédulo. Atônito.
Ela merecia uma fração de respeito.
Talvez mais que isso.
Pela primeira vez, o valor em potencial dela se elevou ao trabalho que a herdeira fajuta daria diante dos meus olhos.
Uma bastarda Sarelli poderosa, sagaz, impiedosa e irritantemente atraente.
O que mais se há para desvendar em você, belíssima?
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